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Nem tão rivais: os pontos de contato entre Biden e Bolsonaro

Especialistas apontam as possíveis afinidades estratégicas entre o presidente brasileiro e o novo inquilino da Casa Branca

Os presidentes Joe Biden e Jair Bolsonaro. Fotos: Angela Weiss/AFP e Marcos Correa/PR
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Muito já se disse sobre os possíveis atritos entre Joe Biden, que toma posse nesta quarta-feira 20 como presidente dos Estados Unidos, e o presidente Jair Bolsonaro, que não terá mais seu ídolo Donald Trump como inquilino da Casa Branca. As diferenças dos dois estão, em geral, na agenda ambiental, que faz estremecer o ministro Ricardo Salles no cargo; no trato com minorias, como LGBTs, mulheres, negros e imigrantes; na relação com movimentos de extrema-direita, adversários de Biden por lá, aliados de Bolsonaro aqui; e na gestão da pandemia.

A recente nomeação do colombiano Juan Gonzalez para a equipe do novo presidente americano azedou ainda mais as perspectivas: ele já criticou Bolsonaro abertamente e, agora, ocupará cargo voltado para a América Latina.

Mas nem só de conflitos viverão os dois chefes de Estado. Para especialistas, Biden certamente leva em conta pontos em que poderá convergir com Bolsonaro pelos dois anos que restam ao presidente brasileiro no Planalto. Os estudiosos destacam, pelo menos, três deles: o freio à China, o desgaste ao chavismo venezuelano e a concordância em expandir a influência estadunidense no continente.

O democrata já provou que dá importância especial à América Latina. Como vice-presidente de Barack Obama, pisou 16 vezes em países da região. É muito mais íntimo das nossas terras do que Trump, que só veio à Argentina em 2018, para a Cúpula do G20, e faltou à Cúpula das Américas no Peru naquele mesmo ano. Não quer dizer que o Trump tenha nos deixado de lado, afinal, retomou intervenções na área em uma clara disputa com a presença chinesa e russa. Porém, com objetivos similares aos do republicano, Biden deve trabalhar sob métodos mais sofisticados para manter o quintal latino submisso aos seus projetos de poder.

Distanciar a China da América Latina será crucial para Biden, diz Filipe Mendonça, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia. O país asiático foi a única grande economia a evitar contração durante a pandemia, fechando 2020 com alta de 2,3% no PIB. Na última década, aumentou investimentos e empréstimos nos países latinos. Para os EUA, que desejam recuperar sua hegemonia global, será imperativo deter a liderança do país asiático no território.

Ainda que uma relação conturbada com os chineses seja prejudicial ao Brasil – o País contribuiu com mais da metade do nosso superávit comercial no ano passado – , Bolsonaro aposta na retórica belicista para mobilizar seu eleitorado. Desde o início do mandato, enfraqueceu os laços com os BRICS. Figuras do seu círculo, como Abraham Weintraub e Eduardo Bolsonaro, colecionaram ataques preconceituosos à China. Durante a pandemia, o presidente subiu o tom e descredibilizou a China pela produção da vacina; chegou a dizer que o imunizante da Sinovac/Butantan transformaria pessoas em jacarés. O governador João Doria (PSDB) chegou a pedir que Bolsonaro pare de falar mal da China.

Para Mendonça, o Brasil “joga um jogo interessante” para os EUA nesse sentido. Como a China também será um problema para Biden, afirma, é possível concluir que o Brasil, a despeito de Bolsonaro, é entendido como um importante dique de contenção aos planos chineses para a região.

“Essa pode ser uma troca entre os dois governos. Biden pode amenizar o tom na questão das relações ambientais, dos direitos humanos e do avanço do populismo de extrema-direita no mundo, e Bolsonaro impedindo a entrada da tecnologia 5G e influenciando os países vizinhos. Essa é a principal moeda do governo brasileiro nessa relação bilateral”, avalia o professor.

Também é uma questão comum a tentativa de derrubar Nicolás Maduro na Venezuela.

Na sua campanha, Biden?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> chamou o mandatário chavista de “ditador” e defendeu a liderança dos EUA no confronto à “massiva crise humanitária” na república bolivariana. Nesse período de transição de governos na Casa Branca, em dezembro, a equipe do democrata se reuniu com os responsáveis pelos assuntos da Venezuela da gestão Trump. Elliot Abrams, encarregado do governo republicano para o país, diz duvidar que Biden tenha planos tão diferentes. Segundo ele, o democrata Bob Menendez, possível presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, tem sido um “grande apoiador” da política de Trump à Venezuela.

“Não creio que veremos grandes mudanças nesta política, e creio que entendem que a cara da oposição é Juan Guaidó”, declarou Abrams, em entrevista ao jornalista Andrés Oppenheimer, da CNN e do Miami Herald.

É conhecida a posição do governo Bolsonaro em relação a Maduro, não somente por meio de declarações agressivas do presidente, mas também por iniciativa do próprio Itamaraty. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, chegou a receber o secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, em Roraima, setembro passado. O ato foi visto como provocação pelo governo venezuelano e por ex-chanceleres brasileiros. Para Mendonça, esse é outro tema em que Bolsonaro pode se tornar um aliado de Biden.

“Trump chegou a flertar e a patrocinar um golpe, para que houvesse uma transição mais violenta. Esse não será o método do Biden, me parece. Talvez ele faça o que o governo Obama fez: uma tentativa de estrangulamento do governo Maduro, por meio de sanções econômicas e cercos de países aliados”, avalia o professor. “Nesse sentido, o Brasil continua sendo peça-chave. Talvez, não em engajamento militar no país vizinho, mas o pode ocupar uma posição importante de contenção, evitando que os países da região se aproximem da Venezuela.”

Maduro já havia se encontrado com Biden em 2015, durante cerimônia de posse de Dilma Rousseff no Brasil. Em uma rápida conversa, pediu “respeito” à Venezuela. Para os próximos anos, os chavistas nutrem expectativas de diálogo com o democrata. Ouvido por CartaCapital, Carlos Ron, vice-ministro das Relações Exteriores da Venezuela, encarregado de assuntos para a América do Norte, evitou análises sobre as perspectivas para essa relação, mas sinalizou esperanças de construir pontes.

“Não sabemos qual será a política do próximo presidente dos Estados Unidos, mas aspiramos que, com a saída de Trump, se vá também a política de agressão contra a Venezuela, e que regressemos ao diálogo e a uma política construtiva entre ambos os países. A Venezuela crê na diplomacia, e estamos dispostos a uma nova relação com respeito mútuo”, declarou.

O cientista político Darlan Montenegro avalia, no entanto, que a marca da política estadunidense para a América Latina tem sido a tentativa de desestabilização dos governos de esquerda da região, não só na Venezuela, mas também no Paraguai, na Argentina, na Bolívia, no Equador e inclusive no Brasil. Essa tendência, portanto, não deve mudar – e, portanto, seguiria na mesma direção percorrida por Bolsonaro.

De uma maneira geral, Montenegro observa que um dos elementos mais fortes do bolsonarismo é a identificação com a política externa americana, altamente intervencionista sob qualquer comando. Assim, não é difícil para que Bolsonaro colabore com os democratas; na verdade, o desafio maior seria conciliar o discurso de que Biden é “comunista” e, ao mesmo tempo, manter esse alinhamento.

Bolsonaro, então, pode atuar “cooperativamente” para a desestabilização de governos de esquerda na América do Sul, no sentido de favorecer a influência estadunidense na região.

“Bolsonaro não terá nenhum problema em se aliar a uma política de desestabilização de governos latinoamericanos alinhados à esquerda, em sintonia com o Departamento de Estado norte-americano. Resta saber se ele tem capacidade para isso”, diz o especialista, professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Entre as contribuições de Bolsonaro à estratégia americana, está a formalização da saída do Brasil da Unasul, em abril de 2019. O chefe do Planalto preferiu integrar o Fórum para o Progresso da América do Sul, o Prosul, mais liberal e afinado com Washington.

No Parlamento do Mercosul, o Parlasul, Bolsonaro ganhou aliado de relevância: Celso Russomanno (Republicanos), apoiado pelo presidente na eleição para prefeito de São Paulo, tornou-se presidente do bloco em 1º de janeiro.

Oscar Laborde, deputado progressista da Argentina que antecedeu Russomanno no cargo, acrescenta que uma das táticas de Biden na América Latina deve ser a retomada das atividades de agências de assistência para o desenvolvimento, as USAIDs, vistas como ferramentas de influência diplomática. Em artigo ao site Tiempo Argentino, em 17 de janeiro, Laborde descreveu a atuação das USAIDs como “polêmicas” pelo respaldo e financiamento a organizações que, invariavelmente, enfrentam governos populares da região.

“Há uma estranha tendência de parte do progressismo local de crer que os democratas são mais próximos às suas ideias, e farão que as coisas sejam mais fáceis para nós. Isso não tem nenhuma base na experiência vivida”, escreveu o deputado. “Os momentos mais críticos na região, onde houve mais intervenções e envolvimento dos Estados Unidos, foram vividos com eles no governo.”

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