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Morte e vida palestina

Até no seu enterro, a jornalista Shireen Abu Aqleh expôs a violência e a crueldade israelenses

Descanse em paz? Não na Cisjordânia, onde soldados israelenses não respeitam um funeral - Imagem: Al Jazeera/AFP e Ahmad Gharabli/AFP
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Nahed Araf Imran e seu marido, Jamal, estavam exaustos, mas animados na manhã da quarta-feira 11. Nahed estava em trabalho de parto do seu terceiro filho em um hospital em Nablus, no norte da Cisjordânia ocupada. Mas, quando a mãe de Jamal chegou ao hospital aos prantos, pouco antes do nascimento da filha do casal, ele percebeu que havia algo errado. “Perguntei a ela o que tinha acontecido, e ela me disse que Shireen Abu Aqleh tinha sido morta a tiros por israelenses. Shireen nos visitou em nossa cidade, Bureen, e cobriu manifestações aqui muitas vezes. Todo mundo a conhece”, disse o operário da construção, de 29 anos. “Minha mãe ficou arrasada. Eu disse para mim mesmo: quando o bebê nascer, vamos chamá-la de Shireen, e minha mulher concordou.”

Shireen Abu Aqleh Jamal Imran veio ao mundo por volta do meio-dia de quarta-feira. Ao amanhecer daquele dia, sua homônima, uma jornalista veterana de 51 anos da rede de TV Al Jazeera, foi baleada na cabeça e morta durante um ataque das Forças de Defesa de Israel na cidade de Jenin, na Cisjordânia.

Autoridades israelenses disseram acreditar que a cidadã palestino-americana morreu após ser atingida por disparos palestinos durante uma briga entre soldados da IDF e atiradores palestinos. Mas os colegas da repórter no local disseram que não havia militantes perto do pequeno grupo de jornalistas, todos com capacetes e coletes claramente marcados com “imprensa”, quando foram atacados por tiros disparados da direção da unidade israelense. Ali Samodi, um produtor da Al ­Jazeera baleado nas costas, disse a The Observer de sua cama no hospital que, mesmo depois que Abu Aqleh caiu ao chão e colegas tentaram alcançá-la, as balas continuaram a chegar. O vídeo do incidente confirma essa versão dos fatos.

Israel rejeitou com firmeza as denúncias de que seus soldados atacaram deliberadamente os jornalistas, mas a comunidade internacional exige explicações para o que a rede Al Jazeera, com sede no Catar, descreveu como um “assassinato” praticado “a sangue-frio”.

Diferentemente dos assassinatos de palestinos anônimos que ocorrem com frequência na Cisjordânia ocupada, Abu Aqleh era um rosto familiar, transmitido para milhões de telespectadores em todo o mundo árabe e bem conhecida por sua bravura durante uma carreira de 15 anos no noticiário da televisão. Ela também era cidadã norte-americana. Desta vez, a estratégia israelense de desvio e negação saiu pela culatra.

O que é visto pelos palestinos como ofuscação israelense também ameaça inflamar uma onda de violência que surgiu em Israel e nos territórios palestinos desde o fim de março. Um vídeo divulgado pela IDF de supostos militantes palestinos envolvidos num tiroteio em Jenin na manhã em que Abu Aqleh foi morta sofreu fortes críticas: o grupo de direitos humanos B’Tselem, que visitou os dois locais, descobriu que era impossível o tiroteio visto no vídeo distribuído pela IDF ser o mesmo que atingiu Abu Aqleh e Samodi.

As cenas da repressão de soldados de Israel durante o cortejo chocaram o mundo

E o espetáculo da polícia israelense a invadir o cortejo fúnebre de Abu Aqleh em Jerusalém na sexta-feira 13, o que fez com que os carregadores do caixão o derrubassem, aumentou a indignação palestina e internacional. A exibição pública de bandeiras palestinas em Jerusalém Oriental ocupada é proibida pelas autoridades ­israelenses em qualquer circunstância, mas muitos enlutados chegaram a agitar bandeiras. O caixão da jornalista também estava envolto na bandeira palestina, seguido por uma maca laranja com um colete à prova de balas com a inscrição “imprensa”.

A União Europeia disse estar chocada com a força “desnecessária” usada pela polícia israelense, enquanto a Casa Branca descreveu as imagens da cena como “profundamente perturbadoras”. A polícia de Israel afirmou que os enlutados perturbavam “a ordem pública” ao atirar pedras na forte presença policial, mas, no sábado, disse que seria feita uma investigação sobre os atos dos policiais. “Fiquei horrorizado com o que vi do funeral na tevê. Acho que mostra como Shireen expôs (Israel), ela conseguiu isso não apenas em vida, mas também na morte”, disse Imran. Ao não deixar o funeral prosseguir com respeito, “eles se expuseram publicamente para o mundo ver”.

A batalha de versões desencadeada pela morte de Abu Aqleh está longe de terminar. Autoridades palestinas rejeitaram a proposta israelense de uma investigação conjunta, dizendo que “criminosos não são confiáveis”, o que levou o primeiro-ministro israelense, Naftali ­Bennett, a acusar os palestinos de negar a Israel “acesso às descobertas básicas necessárias para se chegar à verdade”.

O presidente palestino, Mahmoud ­Abbas, disse durante um memorial de Estado para Abu Aqleh na cidade palestina de Ramallah, na quinta-feira 12, que o caso será encaminhado ao Tribunal Penal Internacional, do qual Israel não é integrante e cuja jurisdição o Estado contesta. Uma investigação preliminar do exército israelense “não pôde determinar” quem disparou a bala fatal, disse um comunicado da IDF na sexta, enquanto uma investigação inicial do Ministério Público palestino descobriu que “a única origem dos tiros foram as forças de ocupação israelenses”.

Nesse meio-tempo, ainda mais do que durante sua carreira, a fama de Abu ­Aqleh cresceu. Diante da casa da repórter em Beit Hanina, em Jerusalém Oriental, vizinhos e amigos se reuniram diariamente para lamentar sua morte, apesar de uma batida das forças israelenses na casa na quarta-feira. Muitos colocaram fotos da jornalista em suas janelas. Na rua tranquila, crianças se reúnem a agitar bandeiras palestinas. “Shireen era cristã e somos uma família muçulmana, mas isso não importava, ela nos uniu”, disse um vizinho. “Para os milhares que lotaram as ruas da Cisjordânia e Jerusalém em homenagem, a vida e a morte de Abu Aqleh tornaram-se um símbolo poderoso. “A história de ­Shireen é a história do povo palestino”, disse Imran, pai da recém-nascida Shireen. “Ela nunca será esquecida, principalmente por nossa família. Toda vez que chamarmos (a menina) pelo nome, lembraremos dela.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Morte e vida palestina”

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