Leymah Gbowee, Lísistrata moderna

Dez anos após mobilizar um grupo de mulheres para exigir o fim da guerra na Libéria, a premiada ativista mantém-se vigilante pela paz e trabalha pela educação

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Para dar fim à guerra civil que assolava o país, um grupo de mulheres decidiu fazer uma greve de sexo enquanto seus maridos não chegassem a um acordo de paz. A solução é clássica e seria fictícia, mas foi posta em prática há uma década. Em 2003, a liberiana Leymah Gbowee, 41, e suas companheiras do Women of Liberia Mass Action for Peace encenaram uma versão real e sem piadas da peça Lisístrata, de Aristófanes, comediante grego do século IV a.C..

Se a heroína criada pelo dramaturgo reuniu espartanas e atenienses e propôs a abstenção sexual para dar um fim à Guerra do Peloponeso, as mulheres da Libéria, na África Ocidental, superaram diferenças étnicas e religiosas para exigir o fim da guerra civil no país, que deixou mais de 200 mil mortos. Com manifestações diárias, piquetes e a greve de sexo, o grupo liderado por Gbowee chamou a atenção da comunidade local e internacional e foi um foco de pressão sobre a assinatura do acordo de paz em Accra, capital de Gana, pelas facções político-militares da Libéria.

Fundada por colonizadores norte-americanos, a Libéria representa mais um capítulo da participação decisiva de potências econômicas na divisão geográfica da África e na consequente escalada das disputas étnicas no continente. Com a eleição de James Monroe à presidência dos Estados Unidos em 1816, a American Colonization Society iniciou a estratégia de enviar escravos libertos de origem africana de volta à terra natal. Os americano-liberianos chegaram à costa oeste da África e logo se tornaram uma elite local. A segregação entre os chamados “honorables” (honrosos) e os povos indígenas africanos alimentou uma tensão racial que teve reflexos diretos nas duas guerras civis da Libéria, entre 1989 e 2003.

Na quarta-feira 9, a ativista participará, ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do seminário “A democracia, a paz e a justiça social no Brasil e na África”, promovido por CartaCapital.

Gbowee testemunhou os piores momentos da Segunda Guerra Civil da Libéria. Iniciado em 1999, o conflito opunha principalmente a Frente Nacional Patriótica da Libéria (FNPL), do então presidente Charles Taylor, e o grupo Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia (Lurd). Disputas étnicas, tensão social e luta pelo controle dos recursos naturais levaram o país a um estado de violência permanente. Mãe de dois filhos na época – hoje ela tem seis–, a liberiana estava exausta de ver garotos pré-adolescentes carregando armas, estuprando mulheres e saqueando casas e lojas por onde passavam.

Inspirada em um sonho que tivera, Gbowee deu início ao Christian Women Peace Iniciative, um grupo formado por mulheres cristãs dispostas a rezar e protestar contra a guerra. Mas a identidade religiosa do movimento não durou muito. A muçulmana Asatu Bah Kenneth, diretora assistente da polícia nacional liberiana, juntou-se às cristãs e mobilizou as mulheres islâmicas do país a somarem forças nos atos contra a guerra. O grupo, rebatizado de Women of Liberia Mass Action for Peace, decidiu se vestir de branco e sentar diariamente no mercado de peixe da capital Monróvia enquanto as negociações de paz não fossem iniciadas. Piquetes em frente à embaixada americana e, claro, a greve de sexo também fizeram parte do plano de ação das liberianas.


Gbowee não supervaloriza, porém, o papel da abstenção no sucesso dos protestos. Segundo ela, teve pouco ou nenhum efeito prático. Mas estimulou uma postura proativa das mulheres em um país dominado por uma cultura de frequente violência masculina. “A greve de sexo foi importante por trazer um sentimento de atitude sexual para algumas mulheres”, diz a CartaCapital. A ativista lembra que muitas das mulheres acabaram “furando a greve” voluntariamente. Outras foram, porém, vítimas da violência de seus maridos. “Algumas apareceram para os protestos com ferimentos recentes ao dizer que tinham apanhado de seus maridos por recusarem sexo.”

Diante da pressão das mulheres, o presidente Charles Taylor, acusado de crimes de guerra, foi obrigado a dar ouvidos ao movimento. Recebeu o grupo no palácio presidencial e aceitou iniciar as negociações de paz, que foram realizadas em Gana. As mulheres formaram uma comitiva e rumaram para o país vizinho para pressionar seus conterrâneos do FNPL e do Lurd a assinarem o acordo. Em um dos episódios mais dramáticos, Gbowee e suas companheiras entraram no hotel onde o tratado era discutido, sentaram de braços cruzados em frente à sala de reunião e impediram que os delegados deixassem o prédio até chegarem a um consenso. A pressão acabou dando certo. Taylor foi exilado para a Nigéria e o acordo de paz foi assinado.

Dez anos depois, Gbowee é uma ativista reconhecida internacionalmente. Em 2011, ganhou o Nobel da Paz, prêmio que dividiu com a atual presidenta da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf, e com a iemenita Tawakkul Karman. A ativista chefiou a Comissão de Verdade e Reconciliação da Libéria até ano passado, quando saiu por divergências políticas com Sirleaf. Também em 2012, ela fundou a Gbowee Peace Foundation Africa, organização filantrópica criada para conceder bolsas de estudo internacionais para estudantes liberianos. Tudo isso, segundo ela, sem desligar-se da vigília pela paz.

“Embora a Libéria tenha feito muitos progressos e não tenha havido guerras na última década, os mesmos fatores que levaram à violência estão presentes”, afirma. “Temos agora uma geração de jovens que não conhece o horror da guerra. Eles estão esperançosos em relação às promessas do governo, mas o otimismo tímido da juventude pode rapidamente azedar.”

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