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“Golpe na Bolívia foi uma reação a Chile, Equador e Argentina”

Celso Amorim mediou conflitos na Bolívia em 2008 e teme pela guerra civil no país. Para ele, a oposição de Morales sempre foi conspiratória

Celso Amorim
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O golpe na Bolívia, diz o ex-chanceler Celso Amorim, foi uma reação aos levantes populares no Chile e no Equador e à eleição de Alberto Fernández na Argentina e integra a disputa intestina pelo poder na América do Sul. Por experiência própria, o ex-ministro, que mediou em 2008 conflitos no país, conhece a veia “conspiratória” da oposição boliviana e a influência profunda dos Estados Unidos na região. Mas como explicar o ódio e o racismo? “Para as elites latino-americanas, às vezes é mais importante manter a desigualdade do que prosperar”, sentencia. 

CartaCapital: Como de costume, há uma guerra de versões sobre os acontecimentos na Bolívia. Alguns chamam de “levante popular” e não golpe. O que o senhor acha?

Celso Amorim: Se não foi golpe, não sei o que seria. Se chega um chefe militar e diz assim: “Recomendo que você renuncie”, o cara está cheio de arma e o outro não tem arma nenhuma, então isso não é recomendação, é imposição. Além disso, chamar de levante popular é discutível, para mim tratou-se de um movimento manipulado. O Evo seguiu a recomendação da OEA e aceitou convocar novas eleições. Mesmo assim, foi obrigado a renunciar. Tratei muito de Bolívia quando fui chanceler. Existe uma influência externa muito grande no país. Nunca aceitaram que Evo Morales, índio, camponês, líder sindical, fosse presidente. E nunca aceitaram políticas de maior igualdade. Geopoliticamente, a Bolívia é o coração da América do Sul. É uma visão tanto da direita quanto da esquerda. Não por outro motivo, Che Guevara montou um foco de guerrilha lá. Os Estados Unidos, ao verem que a Bolívia se abria a outras forças mundiais, resolveram agir.

CC: O senhor vê influência dos EUA?

CA: Não tenho dúvidas. Não posso dizer que foi desta maneira ou daquela maneira, se o Steve Bannon deu uma ordem. Mas a influência dos EUA por lá é permanente. E a oposição sempre tem um pendor à conspiração. Participa das eleições, perde e conspira. 

CC: O que explica tanto ódio a um presidente e a um governo que promoveu o maior ciclo de crescimento da Bolívia?

CA: Para as elites latino-americanas, às vezes é mais importante manter a desigualdade do que prosperar. 

CC: E a reação da comunidade internacional?

CA: É preciso usar com muito cuidado o termo comunidade internacional. O que seria? Há reação de alguns países. O futuro presidente da Argentina manifestou-se, o México, ao conceder asilo político, implicitamente também se manifestou. Ao mesmo tempo começa uma reação dos camponeses. Com base em minha experiência passada, posso dizer que os movimentos indígenas são muito fortes, muito determinados. 

CC: O senhor enxerga riscos de uma guerra civil?

CA: Sinceramente, sim. A Bolívia esteve à beira de uma guerra civil quando houve o movimento, justamente a partir de Santa Cruz. Estive com eles e fizemos uma mediação, via Unasul, e conseguimos pacificar a situação. Houve outras eleições e ninguém contestou. Agora, eles encontram apoio de setores da classe média de La Paz e da polícia, fortemente ligada aos Estados Unidos. Tudo isso não está desconectado dos acontecimentos na região. O Alberto Fernández foi eleito na Argentina, há os protestos no Chile, tivemos a libertação do Lula. Acho que as forças mais retrógradas, representadas pelo Steve Bannon, precisavam fazer alguma coisa. O ponto mais fraco era a Bolívia, então foram para cima.

O senhor vê uma influência dos EUA? “Não tenho dúvidas.  A ingerência externa é muito grande”

CC: O presidente Evo Morales não abriu um flanco ao insistir, contra a vontade da maioria, em um quarto mandato?

CA: Ao olhar de fora, considero um erro. Se ele tivesse ganhado o plebiscito que consultou os eleitores sobre um novo mandato, tudo bem, mas não ganhou. 

CC: E a renúncia, foi acertada?

CA: É difícil julgar a distância. O Evo é muito atilado. Mas não poderia imaginar que as coisas chegariam ao ponto que chegaram. No fundo, uma grande parte dos bolivianos rejeita a ideia de ter um indígena na Presidência da República. Ele não se preparou para essa eventualidade. O que poderia ter feito? Não sei. 

CC: Diante dos acontecimentos em vários países, o Mercosul está ameaçado?

CA: O Mercosul é uma realidade inelutável. Pode até ocorrer um hiato, se o Paulo Guedes insistir, por exemplo, na redução unilateral das tarifas de importação, mas não será o fim. Fico espantando com a passividade dos industriais brasileiros. Não há nada mais a defender? Acabou a indústria? O que é a Fiesp?

CC: O que explica toda essa turbulência na América Latina?

CA: Houve um golpe na Bolívia. No mais, assistimos a acontecimentos não sincronizados ou simétricos. A revolta no Equador, os protestos no Chile e a vitória de Fernández na Argentina apontam para um refluxo da onda neoliberal. No caso da Bolívia, é o oposto, pois havia uma resistência, agora fragilizada. O Steve Bannon, considerado o mentor da ultradireita, disse que a libertação do Lula é uma má notícia, pois ele é o ícone da esquerda no mundo…

Experiência. Amorim mediou conflitos na Bolívia em 2008 e teme pela guerra civil. A oposição a Morales, afirma, sempre teve pendores conspiratórios

CC: A esquerda globalizante.

CA: … Exatamente, globalizante. Trava-se um embate entre essas forças.

CC: O senhor tocou no ponto: como a libertação de Lula se encaixa neste cenário. Há quem alardeia a ameaça de a soltura servir de pretexto para Bolsonaro tentar um golpe.

CA: Não acho. Lula é um homem do diálogo. Acho até espantosa, digamos, a capacidade dele de se conter, depois de passar 580 dias na prisão. Ele vai defender com firmeza os objetivos dos trabalhadores, as reivindicações, vai se opor a essa visão neoliberal, mas estará aberto ao diálogo. Vai aproximar o Brasil da normalidade, pois vivemos tempos de anormalidade, seja na política externa, seja na educação, seja na economia. A volta de Lula abre espaço ao diálogo. Se alguém quiser conversar, há com quem falar diretamente. Ninguém exerce uma liderança nacional como o ex-presidente.

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