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Entre um ‘comunista’ e uma ‘ditadora’, o medo vencerá as eleições do Peru

Os eleitores vão decidir entre a ‘ditadora’ Keiko Fujimori e o ‘comunista’ Pedro Castillo. A pobreza e a violência aumentam

Pedro Castillo e Keiko Fujimori se confrontam em 2º turno da eleição peruana (Foto: Ernesto Benavides/AFP e Redes sociais)
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Os peruanos vão escolher o próximo presidente no dia 6, primeiro domingo do mês de junho. Ou melhor, vão vetar um dos dois postulantes que se engalfinham no segundo turno. Qual medo será mais decisivo? O retorno do autoritarismo corrupto fujimorista ou o temor difuso de um suposto comunismo?

Em uma ­disputa marcada pela violência simbólica e real, Keiko Fujimori, a herdeira do ex-ditador Alberto, e o professor Pedro Castillo, um progressista na economia, mas conservador nos costumes, tentam vencer a resistência de um eleitor desconfiado, impaciente e empobrecido. Neste um ano e meio de pandemia, 3 milhões de cidadãos voltaram a conviver com a miséria extrema. No domingo 23, uma chacina no sul do país, região dominada pelo narcotráfico, reavivou o fantasma do terrorismo. Não bastasse, o lavajatismo importado do Brasil destruiu a política tradicional e abriu as portas a aventureiros.

O comunicado das Forças Armadas a respeito das 16 mortes em Junín, atribuídas ao Sendero Luminoso, levantam suspeitas. Os militares basearam-se em panfletos supostamente deixados ao lado­ dos corpos contra a candidatura de Keiko Fujimori. O comunicado, emitido poucas horas depois da chacina e sem uma investigação presencial, contrasta com testemunhos de sobreviventes, que descreveram a cena como um ataque de três homens com roupas civis, sem semelhança com as ações do grupo terrorista nos anos 1980 e 1990. “Em 2016, às vésperas das eleições, houve uma chacina que resultou em dez mortes. O massacre foi utilizado para afirmar que o terrorismo estava de volta e colocar Keiko­ ­como a única capaz de derrotar esse mal. Atualmente, os remanescentes das facções armadas não atuam ideologicamente, transformando-se em mercenários envolvidos com o narcotráfico e ajustes de contas, por isso há dúvidas acerca dos fatos”, adverte o jornalista Luis ­Noboa.

Muito antes da chacina do domingo 23, o Sendero Luminoso era usado para atacar Castillo e lideranças da Frente Peru Livre, que dá sustentação ao candidato. “Em décadas passadas, apontavam sem provas qualquer um como terrorista. Agora fazem o mesmo com Castillo. No interior, a população não acredita nessa estratégia, usada para eliminar adversários, mas nas grandes cidades é diferente. Além disso, muitos pensam que a esquerda trará mais pobreza. Nesses segmentos urbanos e de classe média se nota o impacto da campanha negativa”, resume a socióloga Alejandra Bernejo.

Apesar do quadro desfavorável na capital, Lima, o campo popular nunca esteve tão próximo de chegar ao poder, segundo a Empresa de Estudos Peruanos, cuja pesquisa revela vantagem de ­Castillo (45%) sobre Keiko (34%), consolidando a inesperada liderança alcançada no primeiro turno, ao ser conhecido como o candidato do lápis, em alusão à sua profissão e ao símbolo da campanha. “Aqui se somam os milhões ansiosos por mudanças, esgotados por um sistema explorador, junto a quem conhece a violência e a corrupção da ditadura Fujimori. Keiko paga pelos delitos do pai e por suas imputações de lavagem de dinheiro, investigação que será suspensa se for eleita”, observa a estudante Natali Vega, defensora de uma nova Constituição e do acesso amplo à universidade, propostas encampadas pelo movimento Peru Livre, preferido entre os mais pobres e moradores das províncias.

Os candidatos tentam superar a rejeição. O vencedor não terá vida fácil

A reedição das marchas “No a Keiko”, realizadas nas duas derrotas anteriores da candidata, novamente mobilizou organizações que denunciam violações da gestão de Alberto, com especial ênfase no processo ainda em julgamento das esterilizações forçadas de indígenas, com quase 300 mil vítimas. “Expressamos indignadas o nosso repúdio às declarações de Keiko. Por justiça, verdade e reparação, Fujimori nunca mais”, ressalta a nota da associação de mulheres afetadas pelo plano, classificado como política de planejamento familiar pela filha do ex-presidente, atualmente preso, mas com promessa de indulto em caso de vitória da filha.

A possibilidade da perda da hegemonia fez a direita curvar-se ao fujimorismo, entre eles o ultradireitista López Aliaga, que em uma marcha contra o comunismo defendeu a morte de Castillo, apoiado, por sua vez, pela progressista Verónika Mendoza. Aliaga defendeu-se mais tarde e disse ter feito apenas referência ao fim político do professor. Em áreas urbanas, houve a difusão de painéis anticomunistas, mensagem reforçada por igrejas católicas e evangélicas, entre as quais a ala reacionária “Com Meus Filhos Não se Meta”. A contenda invadiu as redes sociais e os campos de futebol, com jogadores da seleção preocupados com a ameaça comunista, ainda que Castillo não se defina como tal. “É difícil negar quando seu partido foi fundado pelo comunista Vladimir ­Cerrón. ­Todos os atores sociais devem marcar posição e nessa circunstância apoiar a democracia e o crescimento. Temos um voto oculto no Norte, onde há 11 milhões de eleitores”, projeta o deputado Diego Bazán, do Renovação Popular.

Keiko Fujimori, que esteve detida preventivamente por mais de um ano, marcou presença nessa e em outras regiões depois de ser momentaneamente proibida de sair de Lima em decorrência de processos, cujas penas podem alcançar 30 anos. Quase sempre com uma camisa blanquirroja do selecionado nacional, a líder do Força Popular arremetia contra seu adversário e líderes de outros países, incluindo o ex-presidente Lula, citado numa entrevista, na qual simbolicamente expulsava do país os valores representados pelo socialismo do século XXI.

Apesar da pandemia, os candidatos não dispensaram aglomerações, incluindo o debate na praça central de Chota, terra natal de Castillo. O estado de Cajamarca, aliás, sintetiza a ampla desigualdade, com elevados índices de subnutrição, em contraste aos vultosos lucros de empresas mineradoras. “A direita defende a manutenção do livre-mercado, enquanto movimentos sociais e trabalhadores querem a nacionalização dos recursos naturais para distribuir riqueza. Há improvisações na esquerda, mas o fujimorismo significa o controle de todas as instituições”, adverte Walkiria Falcon, trabalhadora informal. Acostumada às altas altitudes, a população enfrenta a pesada pressão do cotidiano à espera de vacinas, destinadas até agora para­ cerca de 10% dos cidadãos, emprego e segurança. “Muita gente decidirá em quem votar na fila, por isso, tudo pode acontecer, a opção pela renovação ou a volta de uma dinastia”, comenta a taxista Amparo Xavier.

Publicado na edição nº 1159 de CartaCapital, em 27 de maio de 2021.

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