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Eleições presidenciais no Chile estão divididas entre o pinochetismo e o progressismo

A eleição caminha para uma disputa polarizada entre o progressista Gabriel Boric e o pinochetista José Antonio Kast

Reta final. A inexperiência de Boric é explorada por Kast, um saudosista da ditadura de Augusto Pinochet. (FOTO: Redes sociais, Martin Benrnetti/AFP e Javier Torres/AFP)
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Nas eleições mais polarizadas desde o fim da ditadura, a população chilena está dividida entre o jovem progressista Gabriel Boric e o ultraconservador José Antonio Kast, que não disfarça a simpatia pelo regime do general Augusto Pinochet. A divisão acentua-se desde os protestos de 2019, que culminaram na elaboração de uma nova Constituição.

Não bastasse, o desgastado presidente Sebastián Piñera está ameaçado por um processo de ­impeachment já aprovado pelos deputados e agora sob análise do Senado. É acusado de conflito de interesses na venda de uma mineradora que pertencia à sua família, um nebuloso negócio revelado pelo Panama Papers e com rastro pelas Ilhas Virgens Britânicas, tradicional refúgio de sonegadores e criminosos de colarinho-branco.

“É a última eleição com as regras da ditadura, na qual escolheremos presidente, deputados e senadores. A nova Constituição deve prever mais democracia, um estado plurinacional e que permita uma vida mais digna socialmente para cada cidadão”, confia Fran Santoro, trabalhador do Porto de Santo Antonio, o principal do país, sem deixar de reconhecer a incerteza do pleito marcado para 21 de novembro. “A situação é delicada, temos de nos preo­cupar com o neofascismo representado por Kast e, nesse sentido, olhar a experiência do Brasil para não elegermos um Bolsonaro chileno.”

Na última semana, a campanha dos sete candidatos foi praticamente paralisada, devido ao teste positivo de Boric para a Covid-19. Como estiveram juntos em debates, a necessidade de quarentena estendeu-se para Kast, Sebastián Sichel, Marco Ominami, Eduardo Artes e ­Yasna Provoste, a única mulher na disputa. Franco Parisi, postulante contra o qual há uma ordem de detenção devido ao não pagamento de pensão alimentar a dois filhos, faz campanha dos EUA. A trégua limitou-se, porém, à disputa eleitoral. Por todo o Chile, os conflitos continuaram em plena ebulição.

Nesse ínterim, registrou-se a morte de um mapuche durante ação dos ­carabineros, enviados à zona do estado de exceção imposto pelo governo e apoiado pela maioria, conforme consulta cidadã realizada junto aos moradores.

“Possuímos uma terra de muita diversidade, mas sofremos constante vulneração dos direitos dos povos originários”, explica Ericka Vázquez, candidata a deputada por ­Temuco e apoiadora de Boric. “Vivemos na área mais empobrecida do país, ao passo que grandes empresas lucram com a exploração do solo e da água, afetando as comunidades. O conflito segue latente, precisamos mudar esse ambiente.”

Em meio à turbulência eleitoral, o presidente Sebastián Piñera é alvo de impeachment, já aprovado por deputados

O estabelecimento de mecanismos de autonomia territorial é defendido pelo campo progressista, ao passo que a direita se aferra à presença militar, sob a justificativa de conter protestos dos mapuches, como a queima de maquinários das empresas. Desde o início da década de 1990, com o fim da ditadura, o efetivo dos ­carabineros mais que triplicou, passando de 20 mil para 66 mil agentes, mas a criminalidade aumentou nas cidades. As violações cometidas pelos policiais contra manifestantes em 2019 ampliaram o apelo por uma profunda reforma da instituição.

Enquanto segmentos pressionam pela saída de Piñera, setores reacionários da sociedade promovem atos de hostilidade contra migrantes que chegam pelo norte, exigindo a expulsão deles. Apenas neste mês, foram deportados 120 venezuelanos e colombianos – estima-se a presença de 1,5 milhão de imigrantes ilegais no território. Em outubro, cerca de 5 mil chilenos queimaram colchões, roupas, bicicletas e outros pertences de venezuelanos em Iquique, em meio a uma marcha antimigrante.

“Esta crise, com forte êxodo de indivíduos vindos da Colômbia, Venezuela e Haiti, radicalizou o debate e favoreceu Kast, que propôs a criação de valas na fronteira para evitar a entrada de estrangeiros. Uma solução parecida com o muro de Trump na fronteira entre EUA e México”, observa o jornalista Nicolas Yañez. “O candidato vale-se do negacionismo, do populismo penal e do ódio para compor seu discurso”, emenda o diretor do meio digital NYC, que acredita num maior potencial do ex-líder estudantil e deputado Boric em direção ao centro, para vencer no segundo turno.

Os conservadores apostam em assuntos espinhosos, a exemplo do aborto, atualmente em debate no Parlamento, e na desqualificação dos adversários “comunistas”. Kast chegou a convidar Boric para realizar um teste toxicológico durante a campanha. No terreno ético, entretanto, a manutenção de contas no Panamá pelo ex-parlamentar e sua defesa do regime militar podem afastar milhões de eleitores e reforçar a sua alta rejeição.

“Kast é o único candidato capaz de construir maioria para governar. Não apresenta contradições, ainda que não seja de todo popular. Boric tem uma retórica pouco crível e é de uma ignorância suprema em matéria de administração pública”, opina o postulante a deputado em Valparaíso Jaime Perry, o qual projeta parceria regional com Bolsonaro, em caso de triunfo da direita. “Kast poderia ser um grande aliado à medida que as economias chilena e brasileira se complementam.”

O tema econômico, por sinal, está na ordem do dia. Sufocados pelas baixas aposentadorias, mesmo com a possibilidade de saques maiores durante a pandemia, os cidadãos enfrentam ainda o impacto da inflação crescente. O custo de vida é o mais alto dos últimos 13 anos. Se os números maltratam o bolso da população, a proibição, desde o último domingo, da divulgação de pesquisas de intenção de voto aumentará a ansiedade em relação ao resultado.

Correndo por fora, os ex-ministros Sichel, da coalizão governista, e Yasna Provoste, senadora e ex-titular da Educação de Michelle Bachelet, sonham com alguma mudança que impulsione a terceira via chilena. Nos últimos 16 anos, o país teve apenas dois presidentes, com Piñera e Bachelet alternando-se no cargo. Resta saber se o eleitorado se inclinará para uma renovação, mirando o futuro, ou optará pela reivindicação do passado ditatorial.

Publicado na edição nº 1183 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2021.

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