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Diretora da OMS: prioridade é vacinar quem pode morrer, não quem pode pagar
A médica brasileira Mariângela Simão se diz surpresa com a busca da rede privada por uma vacina contra a Covid-19. ‘É um problema ético’
Quase um ano depois da descoberta do coronavírus, a médica brasileira Mariângela Simão, diretora-assistente de Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos da Organização Mundial da Saúde, enfrenta uma nova fase de um enorme desafio: orientar a distribuição global de bilhões de doses de imunizantes.
A prioridade deste ano, destaca, é proteger as pessoas que correr mais riscos de adoecer e morrer pela Covid-19: idosos, profissionais de saúde, dentre outros. “Na imensa maioria dos países, os critérios são esses. Não a capacidade de pagar.”
Por isso, ela com a notícia de que a rede privada brasileira estaria negociando a compra de de 5 milhões de doses de vacinas. Por enquanto, com a fabricante indiana Barat Biotech. “Os grandes produtores de vacina tem priorizado as compras governamentais. E mesmo países que possuem sistemas privados de saúde, a compra é feita pelo governo.”
A expectativa da OMS é que, por meio do consórcio Covax Facility, sejam distribuídas aos países 2 bilhões de doses ao longo do ano.
Mas, mais que distribuir, é preciso de fato vacinar. Nesta conversa com CartaCapital, ela fala dos desafios globais nessa seara.
Confira a seguir.
CartaCapital: Porque é ruim a aquisição privada de vacinas?
Mariângela Simão: Esse é um problema ético e moral. Nesse período, onde mais do que nunca as desigualdades se acentuaram, é importante que o acesso seja justo e equitativo. Tem que vacinar primeiro quem tem mais riscos de adoecer e de morrer. Na imensa maioria dos países, os critérios são esses. Não a capacidade de pagar. É importante ter consciência de que é necessário proteger os vulneráveis.
CC: Alguns analistas veem o Brasil isolado nessa busca. É isso mesmo?
MS: Não estamos observando essa preocupação em outros países. Até porque os grandes produtores de vacina tem priorizado as compras governamentais. Mesmo países que possuem sistemas privados de saúde, a compra é feita pelo governo, e disponibilização é feita conforme os critérios pré-estabelecidos pelos comitês de cada país.Não pelo setor privado. O Brasil tem os seus, os Estados Unidos, a Suíça idem.
Não vou dizer que é típico do Brasil, mas a controvérsia por enquanto é local. Fiquei muito surpresa.
CC: Há também quem invoque a economia: vacinar a população mais jovem facilitaria a retomada. Faz sentido?
MS: Essa discussão ocorreu bastante nesses últimos nove meses. É um argumento complicado. Com a quantidade de vacinas produzidas agora, é impossível proteger toda a sociedade. E a população mais jovem é gigantesca, muito maior que a dos grupos mais suscetíveis a adoecer e morrer. É uma questão de colocar quais os objetivos desse primeiro ano de vacinação.
CC: Qual a expectativa do calendário da OMS?
MS: A expectativa é, por meio do Covax Facility [consórcio coordenado pela OMS para distribuir vacinas em desenvolvimento], distribuir 2 bilhões de doses. O que equivale a vacinar um bilhão de pessoas. A justificativa pra isso está baseada em reduzir mortalidade e atravessar a fase aguda da pandemia, diminuir a pressão sobre o sistema de saúde. À medida que se tem mais fases de produção, ampliam-se as faixas etárias. A maioria dos países já está fazendo isso.
Estamos falando de passar pela fase aguda dessa pandemia, diminuindo a gravidade da doença e evitando as mortes. Isso tem impacto na economia.
CC: Há riscos de um apagão de insumos?
MS: De apagão, não. Mas há riscos. Para aumentar a capacidade de produção das vacinas, é preciso ter frascos. Bilhões deles. Tem que ter o ingrediente farmacêutico ativo.
Ali tem produtos químicos, biológicos, várias coisas… No caso da vacina da Pfizer, que é uma vacina muito complexa, é preciso ainda um diluente que não vem com a vacina, é preciso uma agulha diferente.
Os países, a Unicef e a própria OMS já estavam fazendo compras adiantadas, esperando que haveria necessidade. Durante toda as etapas há possíveis gargalos, da produção à aplicação. A demanda é que vai dizer.
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