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Depois de 4 presidentes em 4 anos, Peru tem avalanche de candidatos ao cargo

Especialistas ouvidos por ‘CartaCapital’ analisam cenário de dispersão do primeiro turno das eleições presidenciais no país andino

Foto: Reprodução/Facebook
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Variada como um cardápio de restaurante, a eleição presidencial no Peru tem candidatos para todos os gostos: dezoito postulantes disputam mais de 25 milhões de votos no 1º turno deste domingo 11. Os dois projetos mais bem-sucedidos nas urnas se confrontarão no turno final em 6 de junho. Mas o resultado é imprevisível, pois os números das pesquisas foram incapazes de indicar com clareza os favoritos.

A última delas veio a público no dia 4 de abril — a lei peruana proíbe divulgações na semana que antecede o pleito. O 1º colocado teve apenas 10% das intenções de voto, depois de uma queda de cinco pontos em relação à pesquisa anterior, apontou levantamento encomendado pelo jornal El Comercio.

O advogado Yonhy Lescano, de 62 anos, está a 1% de diferença de outros dois candidatos. Despontou só depois de novembro de 2020, diz o jornal, porque antes disso ele amargava na 8ª posição.

Há quem situe Lescano na esquerda. Outros, na direita. Em seu plano de governo, propõe a mudança no capítulo econômico da Constituição, por referendo, para preservar “os grandes interesses nacionais e a riqueza nacional”. À rádio Pachamama, criticou o mercado: “As grandes transnacionais levam nossos recursos naturais a preços irrisórios”. Chama a globalização de “discurso barato que beneficia grupos econômicos estrangeiros” e reivindica apoio à indústria peruana. Quer ampliar o controle do Estado nos preços dos medicamentos: “Estão entre os mais caros do mundo”, diz ele. “O mercado é dominado por um oligopólio, com excessivo afã por lucro, que abusa de sua posição dominante.”

Apesar de essas ideias identificá-los com a esquerda, ele mesmo rejeita o título. “Não somos de esquerda nem de direita, vamos na linha da doutrina da Ação Popular”, afirmou à RPP, em referência ao seu partido, um dos mais tradicionais do país. Para a parlamentar feminista Rocío Silva-Santisteban, Lescano “parece de esquerda”, mas é um “populista de direita”, disse em entrevista a uma organização de direitos humanos. Está nos direitos das mulheres uma das maiores controvérsias do candidato, porque mantém firme posição contra o aborto. “A mulher está decidindo sobre a vida de outro ser, e não sobre o seu corpo”, comentou ele no Twitter em 2018, sobre os protestos pela liberação do procedimento na Argentina. À Latina Noticias, em março, rechaçou?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> o aborto em casos de violação sexual. Em relação a LGBTs, no entanto, defende a regulação do casamento homossexual.

O advogado Yonhy Lescano, candidato a presidente do Peru. Foto: Reprodução/Facebook

Hernando de Soto, 79 anos, aparece na sequência das pesquisas. Famoso economista liberal, é presidente do Instituto Liberdade e Democracia, foi vencedor do prêmio Nobel Milton Friedman e figurou em rankings da Time e da Forbes. Ao podcast Conclusiones, da CNN, disse que se vê à direita de Joe Biden e à esquerda de Donald Trump. Sente-se como Bill Clinton. Já foi conselheiro de uma série de políticos, como o ex-presidente peruano Alberto Fujimori e o americano George W. Bush, entre outros.

A psicóloga e antropóloga de 40 anos Verónika Mendoza completa o pódio das intenções de voto, como a candidata mais à esquerda da lista. Seu plano de governo se dedica a direitos sociais e trabalhistas e opõe-se a “significativas privatizações” de serviços públicos, especialmente na área da saúde, em que diz haver “abusos e sobrepreços” por “oligopólios” de medicamentos, seguros e clínicas privadas. Quer, portanto, endurecer a regulação para definir o setor privado como complementar. Até aí, assemelha-se com Lescano. Mas tem propostas mais claras em relação a gênero e sexualidade, como a despenalização do aborto até 12 semanas, leis contra a discriminação a LGBTs e políticas de assistência a transexuais. Também à esquerda, está Pedro Castillo, candidato que mais cresceu nas últimas semanas, chegando ao 6° lugar. Concorre ao cargo pelo partido marxista Perú Libre, fundado em 2012, e propõe a revisão de tratados internacionais que “têm convertido o Peru em uma colônia comercial”.

Esses projetos em competição, no entanto, encontram frágil sustentação em seus partidos e organizações sociais. É o que observa David Sulmont, cientista político da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Para o professor, tais ideais podem estar em dessintonia com o que os candidatos de fato venham a executar.

No caso de Lescano, explica, seu partido abriga uma mescla de lideranças regionais que flutuam entre o progressismo e o conservadorismo. Portanto, as orientações estatistas de Lescano podem contradizer o que defendem os representantes de sua legenda no Congresso. Já Soto, apesar de famoso, não tem nem mesmo um partido próprio. Filiou-se ao Avança País em 2020. Suas ideias têm mais potência entre as classes médias e os veículos de comunicação privados, diz Sulmont.

Na esquerda, o cientista político aponta Verónika como a principal liderança surgida nos últimos cinco anos. Porém, ela não foi capaz de construir uma sigla, não tem uma bancada própria no Congresso e conta com uma base organizativa frágil. Seu partido, Juntos pelo Peru, é uma coalizão de movimentos sociais que têm pautas em comum, mas estão em posições distintas. Além disso, a esquerda peruana é alvo por um agressivo discurso antiesquerda. A dificuldade da candidata em fortalecer essa articulação reflete a dispersão das forças progressistas desde 1980, diz o pesquisador.

Sulmont observa uma também uma participação expressiva de candidatos com pouca tradição partidária. É o caso do astro de futebol George Forsyth, que ficou na 1ª posição das pesquisas durante meses e está num partido fundado em 2020, e de Julio Guzmán, economista que preside uma legenda criada em 2017.

“Não existem partidos fortes no nosso país”, diz Sulmont, a CartaCapital. “A experiência peruana mostra uma alta taxa de rotação de políticos entre diversos partidos. Tudo isso gera uma grande incerteza sobre a relação entre o Executivo e o Parlamento.”

A candidata de esquerda Verónika Mendoza. Foto: Reprodução/Facebook

Extrema-direita presente, mas enfraquecida

Keiko Fujimori, 40 anos, já teve tempos melhores. Na 5ª posição da pesquisa de 4 de abril, seu nome chegou ao 2º turno contra Pedro Pablo Kuczynski em 2016 e foi derrotado por uma margem baixíssima.

Assim como Verónika, Keiko será a 1ª mulher a presidir o país caso eleita. Mas está num lado diametralmente oposto. Evoca o espírito autoritário do pai, Alberto Fujimori, presidente no país entre 1990 e 2000, condenado a 25 anos de prisão por massacres ocorridos no seu governo e réu em processo por esterilizações forçadas contra mais de 300 mil mulheres. Além de prometer indultá-lo, Keiko diz que voltará a governar com “mão dura” e que resgatará uma “democracia firme”.

“Mão dura não é uma ditadura”, escreveu. “Em uma palavra, o que ofereço é uma democratura.”

No entanto, o fujimorismo não encanta os peruanos como antes, observa Sulmont, que também é especialista em comportamento eleitoral. Houve êxitos relativos entre 2006 e 2016, mas a corrente perdeu 2/3 de seu respaldo popular após acusações de corrupção e impasses gerados por estratégias obstrucionistas do seu partido, que controlou o Congresso durante o governo Kuczynski.

Keiko Fujimori compartilha o campo ideológico com o presidente Jair Bolsonaro. Mas, afirma Sulmont, é menos extrema que o ex-capitão. Em uma escala de 0 a 10, o especialista arrisca um 9 para Bolsonaro e um 8 para os fujimoristas.

O Bolsonaro peruano

Há um candidato que reivindicou similaridade com o presidente brasileiro: o milionário Rafael López Aliaga, o “Bolsonaro peruano”, em 7ª posição na última pesquisa. Com 60 anos, veio da instituição católica Opus Dei, chama ideologia de gênero de “porcaria”, rechaça a descriminalização do aborto, defende a cura para a homossexualidade, critica as restrições na pandemia e recusa o uso de máscara na campanha. As agendas neoliberais também são parecidas. Recentemente, porém, deixou de se comparar ao chefe do Palácio do Planalto. “Extremamente intolerante”, disse em coletiva de março, preferindo associar-se aos europeus Margareth Thatcher e Winston Churchill.

“Esses discursos têm uma ressonância autoritária e ainda tem seus adeptos, como no Brasil. Mas, hoje em dia, não há nenhum candidato ou agrupamento político que entusiasme o eleitorado”, diz Sulmont.

A candidata de extrema-direita Keiko Fujimori, em campanha presidencial. Foto: Ernesto Benavides/AFP

Os desafios internos e externos

O vencedor da eleição vai se deparar com uma crise sem precedentes. O país somou mais mortes por Covid-19 que vizinhos como Venezuela, Bolívia, Chile e Equador. Além disso, o Peru teve quatro chefes de Estado em quatro anos, três somente durante a pandemia. Kuczynski deixou o cargo em 2018, com o escândalo da Lava Jato peruana; Martin Vizcarra, seu substituto, foi deposto em 2020; Manuel Merino ficou cinco dias no posto e renunciou; como manda a Constituição, assumiu o presidente do Congresso, Francisco Sagasti.

Para o peruano Julio Carrión, cientista político e professor na Universidade de Delaware, nos Estados Unidos, o novo presidente terá de superar as sequelas profundas deixadas pelo fujimorismo e por elites econômicas representadas no Congresso. Com as derrubadas dos últimos presidentes, o Legislativo percebeu que pode mudar de chefe de Estado a qualquer momento, já que precisa somente de uma maioria simples.

O regime do país tem se transformado, portanto, em um sistema parlamentar, diz ele. Para reverter esse quadro traumático na relação entre os poderes, alguns candidatos defendem uma ampla reforma constitucional.

“Há risco de que o próximo presidente sofra o mesmo que os anteriores, porque o tabu de remover um presidente por incapacidade moral foi rompido”, avalia o professor, autor do livro O legado de Fujimori (Penn State University Press, 2006). A carta que o presidente tem para evitar isso, afirma ele, será apresentar moções de confiança para que os congressistas demonstrem apoio ao Executivo. O instrumento é utilizado em sistemas parlamentares e pode resultar na dissolução do Congresso. “O problema é que não há partidos, são muitos grupos fracionados. O presidente, quem seja, talvez não tenha 1/3 dos votos. Fazer alianças é muito difícil.”

Em relação à política externa, há expectativas sobre os rumos que serão dados ao Grupo de Lima, formado em 2017 por iniciativa do Peru para aumentar a pressão internacional sobre o governo venezuelano de Nicolás Maduro. Os países que compõem o bloco, como o Brasil, consideram o mandatário como ilegítimo. Candidatos ultraconservadores e da centro-direita já designaram a Venezuela como uma “ditadura”. Entre os mais cotados, a única a apresentar uma postura oposta e clara em relação ao tema é Verónika Mendoza, aponta Carrión, o que lhe faz ser acusada por adversários de se aliar ao chavismo. Contudo, a morte do Grupo de Lima já está declarada, analisa o especialista, depois que Maurício Macri perdeu a eleição na Argentina, a oposição venezuelana colapsou e a pandemia veio.

As alianças regionais são “cartas desconhecidas” para alguns candidatos, como Yonhy Lescano, mas parecem claras em caso de vitória de Keiko ou López Aliaga, com possível proximidade a Bolsonaro. A Casa Branca, por sua vez, já afirmou que deseja “trabalhar com quem for eleito”, segundo o Departamento de Estado americano.

“Creio que conservem a política externa peruana dos últimos 20 anos, em que houve um relativo compromisso com a democracia, sem se aliar abertamente a um populista de esquerda. O novo líder, tampouco, deve estar à frente de um novo bloco conservador à direita na América Latina”, finaliza Carrión.

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