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O que deve mudar em relação ao Oriente Médio?

Biden ou Trump? Em entrevista a CartaCapital, especialista destaca impactos da disputa americana nos conflitos da região

Apoiador de Trump em Israel ergue as bandeiras de seu país e dos Estados Unidos. Foto: Jack Guez/AFP
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Os países do Oriente Médio têm sérias razões para se preocupar com o resultado das eleições nos Estados Unidos. A região é palco de conflitos com forte atuação dos norte-americanos, como a invasão ao Iraque em 2003, no governo de George W. Bush, e a crise na Síria em 2013, na era de Barack Obama. Com uma série de medidas polêmicas na administração de Donald Trump, há uma polarização vigorosa entre as lideranças que disputam o poder na área: enquanto o Irã preferia o democrata Joe Biden, Israel e Arábia Saudita torciam pela reeleição do candidato republicano. Assim explica Danny Zahreddine, doutor em Geografia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e membro do Grupo de Pesquisa Oriente Médio e Magreb, em entrevista a CartaCapital.

A começar pelo Irã. O país islâmico é alvo de bloqueios econômicos dos EUA desde 1979, ano em que houve uma revolução. Atualmente, a nação persa é aliada à Rússia e adota uma agenda política que desagrada a Casa Branca, Israel e Arábia Saudita. Apesar do conflito, houve um acordo durante o governo de Barack Obama. Foi na gestão do democrata que, em 2015, os norte-americanos articularam um acordo nuclear, com tréguas nos bloqueios contra o Irã, em troca de limitações na produção de urânio, para evitar o desenvolvimento de armas nucleares. O pacto envolveu Alemanha, China, França, Reino Unido e Rússia.

No entanto, o acordo durou pouco, porque foi desfeito por Trump em 2018. O republicano preferiu retomar os bloqueios econômicos e assumiu uma postura de não-negociação. Além disso, Trump intensificou o apoio dos Estados Unidos a Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel e rival do Irã.

Para Zahreddine, a vitória de Biden representará aos iranianos a possibilidade de retomar o diálogo com Washington e suspender as sanções que dificultam o desenvolvimento do país persa.

“Com Biden, você terá uma disposição maior para a retomada do acordo, em função da própria natureza do Partido Democrata e do legado do Obama nesse processo”, analisa o professor.

Uma reaproximação entre Estados Unidos e Irã não é vista com bons olhos por Israel e Arábia Saudita. Zahreddine destaca que uma das principais agendas do israelense Benjamin Netanyahu é deter a liderança dos iranianos. Quando Trump retomou a política de bloqueios contra o Irã, isso significou o enfraquecimento econômico do país, o que reduz sua presença em outras áreas do Oriente Médio. Ou seja, para Israel e Arábia Saudita, mesmo que o mundo ganhe com um acordo que ofereça estabilidade política na área, “o Irã vai se tornar mais rico, pode prosperar mais, o que ampliaria sua presença nos países da região”, diz o professor.

Olhando para a Síria, o professor lembra que Obama “colocou a faca no pescoço” do governo de Bashar Al Assad em um confronto entre 2012 e 2013. Com o apoio da Rússia, os sírios conseguiram combater a presença americana no país. Após 2018, Trump iniciou a retirada de suas tropas da Síria, o que favoreceu ainda mais o domínio do governo de Assad. Para a Rússia, a volta dos democratas à Casa Branca poderia significar uma retomada das tensões na área, o que tornaria a reeleição do republicano mais vantajosa nesse sentido.

Mas Zahreddine não acredita que a vitória de Biden restabelecerá o cenário que se viu com Obama.

“Agora, o cenário é totalmente diferente. A prioridade de Washington hoje está voltada para a recuperação da economia americana e na reconstituição do seu tecido político e social que está sendo devastado pelo próprio Trump”, explica o professor.

No caso da Palestina, a situação é dramática.

Desde 1948, os palestinos têm choques com Israel, porque naquele ano houve a assinatura da Declaração de Independência do Estado de Israel, e a partir de então o território palestino vem ficando cada vez menor.

Para assegurar o direito a demarcar seu território, a Palestina tenta resolver a questão de forma multilateral, ou seja, envolvendo a comunidade internacional em tratados com o tema do conflito com os israelenses. Porém, Trump acaba de articular acordos de paz bilaterais, como entre Israel e Emirados Árabes, e Israel e Bahrein. A Palestina rechaça esses acordos.

Segundo explica Zahreddine, quando a questão da paz na região passa a ser resolvida de forma bilateral, e não mais multilateral, isso representa uma brecha para Israel transferir as disputas com a Palestina para uma dimensão interna, e não mais global.

Esse problema se soma à opção de Trump em romper relações com os palestinos, como quando decidiu abrigar a embaixada americana na cidade de Jerusalém.

Biden, portanto, pode representar para a Palestina uma projeção mais positiva. O resultado da eleição americana deve, inclusive, influenciar as eleições palestinas, previstas para os próximos meses. Como a administração Trump deixou os palestinos insatisfeitos, uma reeleição poderia dar margem ao partido Hamas, que oferece uma reação mais radical. No entanto, considera Zahreddine, a entrada dos democratas deve mudar o cenário, já que a possibilidade de diálogo voltaria, alternativa que é tradicionalmente adotada pelo Fatah.

“A vitória do Biden dá esperança”, diz o professor. “É difícil traçar algo antes de termos pelo menos seis meses de uma administração Biden. Mas acho que isso daria aos palestinos uma perspectiva bem diferente.”

Confira, a seguir, a entrevista na íntegra do professor Danny Zahreddine a CartaCapital:

Joe Biden e Donald Trump. Foto: MANDEL NGAN, JIM WATSON/AFP

CartaCapital: Entre Biden e Trump, quem ofereceria a maior possibilidade de suspender as sanções contra o Irã?

Danny Zahreddine: Biden. Ele tem uma trajetória política muito parecida com o Obama, numa perspectiva mais institucional, com uma aderência multilateral maior. Isso faz com que ele tente, como já sinalizou, repensar o retorno de um acordo nuclear com o Irã. Então, os iranianos estão na campanha pelo Biden. Ali, você tem uma disposição maior para a retomada do acordo, em função da própria natureza do Partido Democrata e do legado do Obama nesse processo.

CC: Então, para o Irã, é mais vantajoso que os EUA suspendam as sanções, mesmo que estabeleçam restrições em sua produção nuclear.

Danny Zahreddine: Com certeza. O Irã quer a produção de energia. E o que os Estados Unidos, Europa e Nações Unidas querem é uma garantia de que isso não se transforme em um enriquecimento que possa vir a ser usado com armas nucleares.

Isso não é um problema, tanto que não foi um problema até o Trump assumir com uma agenda diferente. A agenda do Trump respondia ao interesse de outros países do Oriente Médio, principalmente. O que estava em jogo era a diferença entre ganhos relativos e ganhos absolutos. Ali, os americanos não quiseram deixar nenhum tipo de brecha de ganhos absolutos para os iranianos.

Na visão dos sauditas, dos israelenses e dos americanos, não adianta ter ganha-ganha. Mesmo que Israel ganhe ou o mundo ganhe com mais estabilidade, o Irã vai se tornar mais rico, mais forte, pode prosperar mais, desenvolver-se mais. Isso ampliaria a presença do Irã nos países da região.

CC: A conduta dos democratas poderá contribuir para que o Irã amplie sua liderança na região?

Danny Zahreddine: Eu não vou chegar a dizer isso, porque eu não sei as restrições que eles poderiam colocar. Mas, se você pensar friamente, na cabeça dos iranianos e, do outro lado, na cabeça dos israelenses e sauditas, é exatamente isso que está em jogo.

Por exemplo, no Líbano, há uma opinião dividida, justamente porque Trump tem uma postura de não negociar com o Irã. Isso reverte nas relações internas do Líbano, entre o Hezbollah [partido apoiado pelo governo do Irã] e os demais partidos cristãos que são contra o Hezbollah, principalmente os sunitas.

Já a Arábia Saudita apoiava fervorosamente o Trump, porque Trump é duríssimo com o Irã, enquanto os democratas vão abrir algum tipo de diálogo.

Presidente iraniano, Hassan Rouhani. Foto: Presidência do Irã

CC: A Rússia combateu a presença dos EUA na Síria durante o governo de Obama. A chegada de Trump representou alívio na região?

Danny Zahreddine: A pergunta é interessante, porque ela toca em dois níveis de análise. Um nível é local, dos Estados Unidos. Provavelmente, se o coronavírus não tivesse aparecido, Trump poderia ter levado essa eleição. A condição da economia e do desemprego o cacifava para fazer “a América grande de novo”, como ele dizia.

Mas isso gerou impactos graves para a região do Oriente Médio, do ponto de vista estratégico. São graves, no sentido de que Trump abriu espaço para os iranianos e para os russos. Por isso, não é um jogo fácil de compreender. Para os russos, seria melhor o Trump ganhar, por sua presença na região.

O Irã, que é o maior aliado russo na região, prefere que o Biden ganhe, justamente em função dessa desarticulação que foi promovida no caso da Síria e no caso do Iraque.

Acho que não há muito espaço para um cenário como o de 2012 ou 2013, em que Obama colocou a faca no pescoço dos sírios e dos russos. Agora, o cenário é totalmente diferente. Então, não sei se a volta dos democratas aparece como uma ameaça para a Síria. Hoje, dois terços da Síria estão nas mãos do governo. Quem está no norte da Síria são os turcos e, num pedaço razoável do nordeste, os curdos. Então, não sei se há ambiente para uma confrontação mais dura com os sírios nesta altura do campeonato.

Não sei se mudaria muito a situação. A prioridade americana hoje está voltada para a recuperação da economia americana e na reconstituição do seu tecido político e social que está sendo devastado pelo próprio Trump. Por outro lado, o Biden vai tentar refazer a sua política externa para o Oriente Médio, que era uma política externa muito desbalanceada.

Então, para os russos, era melhor que o Trump continuasse. Mas, ao mesmo tempo, não sei se a entrada dos democratas mudaria significativamente o jogo na Síria.

CC: O apoio dos Estados Unidos a Israel seguirá o mesmo?

Danny Zahreddine: Definitivamente, não vai. A própria fala do Biden foi de que ele era o advogado de um caminho que levasse a dois estados, e que, se ele assumisse, ele iria se esforçar para garantir segurança a Israel, e para garantir aos palestinos seu estado.

Isso tem gerado um debate em Israel que é muito interessante. Muitos, inclusive no Haaretz [jornal de Israel], têm apontado que, na verdade, o Trump era um aliado grande do Netanyahu, e talvez não de Israel. E que, para Israel, Trump não fosse um aliado importante do ponto de vista do tratado do acordo de paz com os palestinos. Parece que é menos uma política de Estado, porque os americanos contrariaram uma relação antiga dos Estados Unidos na relação com o conflito palestino e israelense.

Então, a questão em Israel tem dois lados. Por um lado, muitos advogam que seria melhor se o Trump continuasse, principalmente em função da questão iraniana. Por outro lado, o desgaste que Trump gerou para suas relações com os palestinos talvez não tenha sido o melhor caminho. Foram desgastes acumulados.

Os Estados Unidos cortaram o apoio à agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos. Cortaram o apoio a uma série de organizações palestinas. Eles vão mudar a embaixada para Jerusalém.

Os Estados Unidos contrariaram uma série de princípios que já estavam sedimentados nas relações entre Israel, Palestina e Estados Unidos.

Então, se a gente for pensar a relação com o Irã, que para Israel, é um fato mais sério do que a questão palestina, a saída do Trump é ruim. Mas, por outro lado, para os trabalhistas, para a centro-direita moderada e para a esquerda israelense, a vinda do Biden pode dar um suspiro diferente para as relações com os palestinos.

Como disse o primeiro-ministro da Palestina, se o Trump ganhasse, Deus que cuidasse dos palestinos, porque eles estariam fulminados. [Segundo a emissora Al Jazeera, em 13 de outubro, Mohammad Shtayyeh disse: “Se vivermos mais quatro anos com Trump, que Deus nos ajude, e que Deus ajude o mundo inteiro”.]

O premiê de Israel, Benjamin Netanyahu, e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Foto: D. Myles Cullen/White House

CC: Qual o futuro dos acordos de paz de Israel articulados por Trump?

Danny Zahreddine: Eu acho que isso não muda, porque são acordos bons, não são acordos ruins. Na verdade, são trunfos que o Trump tentou colecionar para demonstrar o sucesso da sua política externa para o Oriente Médio. Mas foram ganhos muito laterais, porque questões centrais não foram alteradas.

De toda forma, o que eu vejo é que esses acordos não mudariam em nada, porque são acordos que trazem desdobramentos positivos. Eu só não acho que o curso de ação daqui para frente vai ser este. Talvez, a nova administração terá de buscar uma solução para a questão palestina e israelense, primeiramente, e a questão iraniana.

CC: A eleição dos EUA pode influenciar nas eleições da Palestina, prevista para os próximos meses?

Danny Zahreddine: Eu penso assim. As tentativas multilaterais que favoreceram os acordos de Oslo, todas aquelas tentativas de criação de um estado palestino, são encabeçadas pelo Fatah, partido que está comandando a OLP [Organização para a Libertação Palestina, grupo político criado em 1964 com o objetivo de criar um estado].

Todas as vezes que esse caminho é erodido, como em qualquer outro lugar, a oposição vai se empoderar. É nutrida a ideia de que o curso de ação mais radical, em vários momentos, funciona.

Agora, hoje, a Palestina vive um momento dramático.

A vitória do Biden daria esperança. Eu não acredito em uma postura mais radical.

Eu concordo que a ação bilateral de Israel com os países árabes reforça um caminho de unidade entre os palestinos, e nesse caminho de unidade, o Hamas pode vencer. Mas, retornando à possibilidade de diálogo com os Estados Unidos, esse cenário também muda. Então, é muito difícil traçar uma perspectiva antes de termos pelo menos seis meses de uma administração Biden, para vermos como ela sinalizaria suas relações regionais. Mas acho que isso daria aos palestinos uma perspectiva bem diferente.

O que o Trump tentou fazer foi mudar radicalmente o paradigma de condução das negociações de paz na região, favorecendo Israel. Isso gerou o aprofundamento de uma crise no futuro dos acordos de paz. Então, eu vejo que o Hamas pode se fortalecer, como se fortaleceu na última eleição, em função da incapacidade do próprio Fatah e da OLP em manter as promessas feitas junto com as potências ocidentais e com Israel.

Mas é um jogo muito complicado. Particularmente, na sociedade palestina, que é muito politizada, você tem uma disputa forte que permitiu ficar 15 anos sem eleição. Se houvesse mais unidade política entre eles, talvez, tivessem mais força para pressionar Israel. E não têm.

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