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Al-Assad, um ditador? O que está em jogo nas eleições que podem levá-lo ao 4º mandato

No ano que marca uma década da guerra, o presidente que há 21 comanda com mãos de ferro o país pode sair vencedor nas urnas

Em Damasco, capital da Síria, placas de Bashar al-Assad e dos adversários estão espalhadas pelas ruas. Foto: Louai Beshara/AFP
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Caso a eleição desta quarta-feira 26 confirme seu favoritismo, Bashar al-Assad, aos 55 anos, chegará à terceira década no comando da Síria. Se levadas em conta as acusações de atentado à democracia e aos direitos humanos, feitas sobretudo por países do Ocidente, e o cenário de destruição após 10 anos de guerra civil, é difícil explicar a sua popularidade.

Mas a população está animada para o pleito, se considerada a descrição do jornal sírio Tishreen, na terça-feira 25, ao reportar comemorações na cidade de Hasaka, em frente à praça do falecido pai de Bashar, Hafez al-Assad: “Massas celebram até o amanhecer em apoio às eleições presidenciais”.

Dentro e fora do país, são 18,1 milhão de eleitores convocados às urnas — a votação no exterior foi aberta em 20 de maio. Os países ocidentais veem fraude. “Para que uma eleição tenha credibilidade, todos os sírios devem ter permissão para participar, incluindo sírios deslocados internamente, refugiados e membros da diáspora, em um ambiente seguro e neutro”, disseram Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha e a Itália, em um comunicado conjunto na segunda-feira. “Sem esses elementos, esta eleição fraudulenta não representa nenhum progresso em direção a um acordo político.”

21 anos no poder

Cada mandato presidencial tem 7 anos. Assad está no poder desde 2000, graças a um referendo realizado após a morte do seu pai, Hafez, em que teve 97,2% dos votos. Em 2007, foi eleito com 97,6%. Em 2014, venceu com 88,7%. Hafez Al-Assad governou a Síria entre 1971 e 2000, através de um golpe. Bashar não era o herdeiro direto. Em 1994, quando estudava medicina em Londres, seu irmão mais velho, Bassel, morreu em um acidente de carro. Bashar então voltou a Damasco para se preparar para suceder o pai.

A manutenção do mesmo líder no poder por tanto tempo é um dos fatores que motivam o título de ditadura e a percepção de fraude nas votações. Mas essa visão é criticada pelos governistas. “As eleições sírias são mil vezes melhores que as dos Estados Unidos“, disse o chanceler Faisal al Miqdad a jornalistas.

Pelo Partido Socialista Árabe Baath, laico e nacionalista, Assad enfrenta outros dois candidatos: Abdullah Saloum Abdullah, do Partido União Socialista, e Mahmoud Ahmad Meri, líder da oposição pela Frente Democrática Síria. A Corte Constitucional Suprema considera que, entre 51 inscritos, somente esses três cumpriram os requisitos legais para a disputa.

O panorama social de hoje reflete consequências dos recentes conflitos. A Unicef relatou, em dados de março, aumento de 230% no preço da cesta básica no ano passado e meio milhão de crianças com desnutrição crônica. A Oxfam aponta 80% da população abaixo da extrema pobreza, em um país com 20 milhões de pessoas. A Síria foi o país que mais gerou refugiados, diz agência da ONU, com 5,5 milhões nessa condição. Cerca de 400 mil pessoas morreram por causa da guerra, dizem estimativas.

O prestigiado historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira descreveu a Síria como “o grande teatro da guerra”

Guerra de versões

O comando de Assad foi responsabilizado por 85 ataques químicos entre 2013 e 2018, tendo o cloro como agente mais usado, segundo análise da organização americana Human Rights Watch. Os ataques teriam ocorrido durante os confrontos do Exército com terroristas do Estado Islâmico, mas atingiram inocentes, segundo essas apurações.

Equipes de resgate da Defesa Civil trabalham em escombros após ataque aéreo na província síria de Idlib. Foto: Civil Defense Idlib/22-12-2015

Bashar al-Assad nega autoria dos ataques. Diz que as autoridades e os jornais ocidentais mentem sobre os números. Em entrevista?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> de novembro de 2019, à emissora Russia Today, ligada ao governo Putin, disse que até evitou falar com veículos jornalísticos em anos anteriores: “Já dei muitas entrevistas aos meios de comunicação ocidentais, e eles não tentam obter a informação. O que querem é uma exclusiva”. Sobre o conhecido relato de ataque químico em Ghouta, em 21 de agosto de 2013, que teria deixado até 1,3 mil civis mortos, Assad diz que se tratou de “um conto” dos líderes ocidentais que serviu de pretexto para a invasão da Síria. “Não apresentaram nenhuma prova tangível que mostrasse quem realmente realizou esse ataque.”

De fato, há investigações inconclusivas. Em 6 de maio deste ano, a ONU se limitou a relatar “motivos razoáveis” para “acreditar” na ação do Exército com armas químicas, acusando “inconsistências” nos pareceres do governo. A Rússia diz que há deficiência em conclusões contra Assad, que a equipe de investigação da ONU foi formada sem consenso e que se oferece como prova “um vídeo retirado de redes sociais, sites, depoimentos de testemunhas tendenciosas e até mesmo fatos adulterados grosseiramente”.

“Mesmo regimes autoritários podem ter algum tipo de legitimidade na população”, considera Guilherme Pires

Para Guilherme Pires, pesquisador do Grupo de Estudos sobre Oriente Médio e Magreb da PUC Minas, há certa instrumentalização política por agentes externos em relação à questão dos direitos humanos na Síria, embora o regime seja, sim, marcado pelo autoritarismo.

“É um dos regimes mais fechados na região, sobretudo no período do pai, Hafez al-Assad. Houve um período de abertura com Bashar, mas é um regime que governa pela repressão”, avalia o professor.

Pires reconhece, entretanto, legitimidade popular de Assad, devido a reformas sociais importantes desde a gestão de seu pai, como auxílios financeiros e certa qualidade na máquina pública. “Antes da crise, a Síria não era um país exatamente pobre.”

Por outro lado, faltam ao governo sírio garantias democráticas, apesar da realização periódica de eleições e do respaldo popular. Há ainda um uso do discurso sobre a imprevisibilidade do país após uma eventual queda de Assad, o que contribui para a manutenção da sua popularidade.

“Eu caracterizo esse governo como um regime autocrático”, categoriza o professor, evitando o termo ditadura. “Mas não quero dizer que as forças da oposição são democráticas.”

Bashar al-Assad chama de “conto dos líderes ocidentais” o relato de ataque químico em Ghouta, em 2013. Foto: Reprodução/RT

A influência americana

Estudiosos apontam influência externa sobre os conflitos domésticos da Síria. Itamar Rabinovich, professor de História do Oriente Médio na Universidade de Tel Aviv e ex-embaixador de Israel na Síria, disse em artigo no The New York Times, em novembro de 2011, que o país se tornava, novamente, “arena de rivalidades regionais e internacionais”.

A Síria, emancipada da França em 1946, viveu 25 anos como um estado instável e fraco, campo de disputa entre potências, diz ele. A chegada de Hafez-al Assad ao poder, em 1971, a transformou em um “estado estável e poderoso”, ator internacional importante, por meio de um acordo tácito em que o protagonismo nacionalista árabe era compensado pelo autoritarismo e pela hegemonia da família no comando. Tempos depois, os ventos voltariam a soprar rumo ao passado. As revoltas da Primavera Árabe, avalia, marcaram “o fim deste contrato não escrito” e empurraram a Síria a seu estado pré-1970, descreve o professor, ao qualificar o conflito como “uma guerra por procuração entre o Irã e seus rivais”.

O próprio governo dos EUA manifestava publicamente sua vontade de derrubar Bashar al-Assad. Em 2005, bem antes da guerra, George W. Bush citou o país nominalmente em discurso: “Para promover a paz em todo o Oriente Médio, devemos enfrentar os regimes que continuam a abrigar terroristas e a buscar armas de assassinato em massa”.

Homens da defesa civil na Síria trabalham em uma rua onde prédios foram destruídos por ataques aéreos. Foto: Civil Defense Idlib

Entre 2006 e 2009, pelo menos 6 milhões de dólares foram destinados pelo Departamento de Estado americano à oposição da Síria, conforme mostrou reportagem do The Washington Post de 2011. Países do Golfo Pérsico, como Arábia Saudita e Catar, pagavam membros do grupo armado Exército Sírio Livre para encorajar deserções do exército do governo e incentivar operações paramilitares. Armas enviadas pelas petromonarquias iam para grupos rebeldes radicais, mostrou o NYT em 2012.

Para o professor Guilherme Pires, é verdade que os Estados Unidos ajudaram a dar continuidade aos conflitos, apoiando determinados grupos de oposição. Pondera, entretanto, que era a transferência de armamentos sem acompanhamento e sem perfil claro dos destinatários que possibilitava o recebimento por atores extremistas.

Para a professora Silvia Ferabolli, especialista pela Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, as intervenções externas, americana ou russa, dificultam a caracterização ideológica do governo.

“Se eu digo que o governo Assad é uma ditadura, imediatamente estou localizada no campo pró-Estados Unidos, o que é absurdo”, afirma a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “A democracia representativa não é uma característica do regime. De alguma maneira, ele sempre é eleito com uma margem gigantesca de votos.”

Silvia observa que se convencionou localizar no progressismo as repúblicas árabes apoiadas pela Rússia, e intitular de conservadoras as monarquias pró-Estados Unidos. Mas essas separações podem ser simplistas. Preocupada com a ascensão da extrema-direita no Brasil e as definições distorcidas sobre o campo progressista, a professora rejeita aplicar nossa ideia de esquerda ao governo sírio.

Moniz Bandeira e a segunda guerra fria

O prestigiado historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira descreveu a crise na Síria como Major Theater War, ou “o grande teatro da guerra”, palco da confrontação entre dois blocos: de um lado, Estados Unidos, União Europeia, petromonarquias do Golfo Pérsico, Turquia e Israel; do outro, Irã, Rússia e China.

No livro A Segunda Guerra Fria (Editora Civilização Brasileira, 2013), Moniz Bandeira reconhece as insatisfações internas da população com o governo e a “dura e sangrenta repressão do governo Bashar al-Assad”. Ao mesmo tempo, detalha como essas condições foram aproveitadas pelos Estados Unidos e seus sócios para dar seguimento a projetos geopolíticos na região.

Os EUA tentam desde os anos 80 derrubar o governo sírio, aponta o historiador. À época, Hafez al-Assad se aproximou da União Soviética de Brejnev, vínculo que se seguiu com Gorbatchev e se manteve com Putin. A Casa Branca, assinala, jamais se conformou com a hegemonia da Rússia no Mediterrâneo.

O conflito na Síria foi examinado pelo autor como uma das etapas, não somente da chamada Primavera Árabe, mas de uma agenda de regime-change, ou seja, mudanças de regime, adotada por Washington na região da Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio, após importantes descobertas de fontes de energia.

Embora a produção de petróleo na Síria fosse modesta (530 mil barris por dia, detalha ele no livro) a localização do País era estratégica em termos de segurança e de transporte de energia, cujo sistema estatal crescia. O interesse das potências ocidentais recairiam, em especial, sobre ativos petrolíferos descobertos na Bacia Levantina. As reservas ali encontradas apresentavam “extraordinária significação geoeconômica, geopolítica e geoestratégica”, uma vez que poderiam abastecer os Estados Unidos e a União Europeia, argumenta o autor.

Outros interesses americanos e de outras potências ocidentais levantados por Moniz Bandeira envolvem assumir o controle do Mediterrâneo, isolar politicamente o Irã, aliado da Síria, e eliminar a influência da Rússia e da China no Oriente Médio e no Magreb.

Barack Obama era presidente dos Estados Unidos quando guerra na Síria esteve em curso. Foto: Reprodução/TV Globo

A queda de Assad, escreve Moniz Bandeira, “permitiria suprimir a presença da Rússia, de suas bases navais na Síria (Tartus e Latakia); cortar as vias de suprimento de armas para o Hezbollah no sul do Líbano; conter o avanço da China sobre as fontes de petróleo; estrangular o Irã”. O resultado desta equação, completa ele, seria “o pleno domínio territorial, marítimo, aéreo e espacial, bem como a posse de todos os ativos do Mediterrâneo […]”.

Orientados por tais interesses, o bloco ocidental teria ajudado combatentes de oposição sírios, com apoio da “guerra psicológica” promovida pela imprensa ocidental.

 

Vencedor da guerra, Assad tem desafios por reconciliação

Dez anos depois, Assad é visto como vencedor da guerra, após recuperar territórios que haviam sido ocupados por extremistas, com ajuda da intervenção russa. Há pela frente, no entanto, um processo de reconstrução da infraestrutura do país e, sobretudo, da reconciliação entre grupos políticos e religiosos.

Assad representa os alawitas, minoria descendente do islamismo xiita. Os xiitas, aliás, são minoria em todo o mundo muçulmano (entre 10% e 20%), com presença dominante somente no Irã, e maioria no Azerbaijão, Bahrein, Iraque e Iêmen. Assim como em todo o Islã, a maioria na Síria é de sunitas. Xiitas e sunitas se separam, a grosso modo, por uma discordância sobre o legítimo sucessor do profeta Maomé. Diferente do projeto de outros países poderosos da região, que planejam expandir suas leis religiosas, Assad segue firmando um estado secular. Pressões de vizinhos, contudo, podem seguir dentro do país, se considerado que militantes da Irmandade Muçulmana se infiltraram desde 1970.

Além disso, ainda são imprevisíveis os rumos que Joe Biden, novo chefe da Casa Branca, tomará com Assad. Vale lembrar que era ele o vice-presidente dos Estados Unidos quando a guerra na Síria ascendia. Como presidente, Biden?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> já autorizou ataque com mísseis na Síria.

Domesticamente, a vitória de Assad pode dar alguns anos de tranquilidade, analisa a professora Ferabolli, porque deve evitar a desintegração do país ao mesmo caos em que caíram o Iraque e a Líbia.

“Não é de todo ruim a permanência de Assad no poder, apoiado pela Rússia, se o que consideramos como paz é a manutenção do status quo“, opina. “Se paz é a ausência de guerra, então provavelmente a Síria vai ter paz nos próximos anos com a manutenção de Assad. Agora, se a gente considerar como paz algo maior do que isso… Então, é triste que a paz na Síria tenha preço alto.”

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