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Afeganistão será campo de prova da união entre China e Rússia contra os EUA, diz especialista

Para Diego Pautasso, cresce o papel dos países asiáticos no conflito afegão, frente à péssima repercussão da ocupação americana por 20 anos

Membros do Taleban nas ruas de Cabul, capital do Afeganistão. Foto: Wakil Kohsar/AFP
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Principais adversários dos Estados Unidos no tabuleiro global, Rússia e China muniram os seus corpos diplomáticos e os seus meios de comunicação com críticas à intervenção americana no Afeganistão, após o anúncio de Joe Biden sobre as retiradas das tropas do País e a retomada do poder pelo Taleban.

Entre as acusações, estão a de que o governo americano não assegurou a preservação de direitos humanos no país durante os 20 anos e a de que, na verdade, os interesses eram alheios ao pretexto de combater o terrorismo.

 

A Rússia não demorou para intitular a operação de 20 anos no Afeganistão como “outro erro na lista de ingerências dos Estados Unidos”. Em 17 de agosto, dois dias depois de o Taleban tomar Cabul, o vice-ministro das Relações Exteriores do País, Alexánder Grushkó, lembrou dos fracassos norte-americanos na Iugoslávia e na Líbia e disse que a intervenção no Afeganistão representou “um bilhão de dólares desperdiçados” e foi concluída com um “resultado lógico” de 71 mil civis mortos, pobreza e desnutrição.

María Zakharova, porta-voz do Ministério, declarou em 19 de agosto que os países ocidentais “não abandonam suas incontáveis tentativas de culpar a quem seja e inventar explicações para suas próprias dificuldades”. A diplomata também responsabilizou o ex-presidente afegão Ashraf Qani, visto como aliado dos Estados Unidos, pelo sucesso do Taleban: “Nos últimos três anos, teve todas as oportunidades para garantir o êxito do processo inter-afegão e facilitar a formação gradual de um governo inclusivo, mas essa oportunidade se perdeu”.

Já o diplomata chinês Wang Yi telefonou em 17 de agosto para o secretário de Estado americano, Anthony Blinken, para dizê-lo que “a cópia mecânica de um modelo estrangeiro importado não pode ser facilmente adaptada ao uso por um país com uma história, cultura e condições nacionais completamente diferentes”. O ministro das Relações Exteriores também tem incentivado o Taleban a “estabelecer um marco aberto e inclusivo de conformidade com a sua própria situação nacional” e sinaliza reconhecimento ao grupo como governo oficial do país, apesar de denúncias graves sobre violação dos direitos humanos.

Para Diego Pautasso, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor do livro China e Rússia no pós-Guerra Fria (Juruá Editora, 2011), o papel dessas suas potências cresce para o Afeganistão em um cenário de forte desprestígio sobre a atuação dos Estados Unidos.

Em entrevista a CartaCapital, o professor percebe uma capacidade de diálogo em relação ao Taleban, sobretudo por parte dos chineses, por meio de estratégias diferentes das utilizadas pelos americanos. Enquanto Washington prefere táticas como a intervenção militar e o bloqueio econômico, resta a Pequim apostar na possibilidade de motivar os novos comandantes afegãos a se moderarem em troca de possíveis vantagens econômicas.

“A questão é provar que o único meio de estabilizar é via desenvolvimento e integração”, analisa o pesquisador. “A estratégia chinesa é a mais pragmática: engajar, moderar e, a partir disso, estabelecer termos de convívio.”

O Taleban, que governou o País entre 1996 e 2001, é também consequência de investimentos dos Estados Unidos em rebeldes para deter a presença da União Soviética na região no século passado.

Apesar de o Taleban ter deixado de ser, por ora, aliado funcional para a Casa Branca, um eventual papel desestabilizador na região daqui para frente pode dificultar os interesses dos principais adversários dos americanos. Isso porque a localização do Afeganistão está no entorno estratégico dos dois países asiáticos, situação que pode definir, por exemplo, conflitos civis em regiões importantes e disposições de rotas comerciais.

Para a Rússia, perturbações no Afeganistão podem rebater nas suas províncias muçulmanas, examina Pautasso. No caso da China, há preocupações com a questão de Xinjiang, onde há movimentos separatistas, em localidade bem próxima ao território afegão.

Para neutralizar possíveis convulsões, a Rússia ainda avalia a possibilidade de diálogo com o Taleban. Para a China, há a perspectiva de inclusão do Afeganistão no megaprojeto da Rota da Seda, cuja negociação já ocorre desde o governo Qani, observa o professor.

Veja, a seguir, a entrevista na íntegra.

Cabul, capital do Afeganistão. Foto: Wakil Kohsar/AFP

CC: Qual é o interesse da Rússia em se colocar na dianteira das acusações contra os Estados Unidos sobre a atual situação do Afeganistão?

Diego Pautasso: Tem várias questões. A primeira delas é a seguinte. A narrativa americana tem sido anti-Moscou e anti-Putin desde o início do século e tenta colar na Rússia toda forma de autoritarismo e de comportamento expansionista no entorno regional. Ora, a Rússia está devolvendo a narrativa, mostrando que os Estados Unidos, sim, são os responsáveis por esses movimentos disruptivos na região, e que o problema dos direitos humanos não vem com o Talibã, mas de um ciclo anterior de desestabilização provocada pela guerra global ao terror. É reagir à postura americana que costuma responsabilizar a Rússia por um comportamento autoritário interno e externo.

A questão fundamental é: embora o Trump e o Biden tenham escolhido a China como o grande inimigo como o grande desafiador, a Rússia é o segundo país. E a aliança sino-russa é o pior cenário possível para os Estados Unidos no século XXI, e é o cenário que está se formando. Me parece que o Afeganistão é um campo de provas: de um lado, os americanos, com a sua estratégia de intervenção mal sucedida, e de outro lado, a tentativa da China e da Rússia de engajamento do Afeganistão, provavelmente na organização da operação Xangai e na nova Rota da Seda, transbordando o corredor econômico China-Paquistão para o vizinho e buscando a estabilização via desenvolvimento e integração regionais.

Se isso funcionar, temos dois modelos de tentativas de lidar com problemas internacionais que podem balizar essa disputa. A questão é provar que o único meio de estabilizar é via desenvolvimento e integração.

CC: Quais são os interesses russos no território afegão? Além disso, é possível comparar a intervenção da União Soviética à intervenção dos Estados Unidos?

DP: A desestabilização do Afeganistão ou de qualquer país da Ásia Central certamente rebate nas províncias muçulmanas da Rússia, sobretudo na Chechênia. O entorno regional é estratégico, e o Afeganistão é uma das preocupações fundamentais da Organização para a Cooperação de Xangai. Vários encontros e documentos foram feitos tratando sobre o País, desde o início. É bom lembrar que a Organização foi fundada tomando como partido o combate aos três males, o terrorismo, o fundamentalismo e o separatismo. Obviamente, o Afeganistão é um pólo irradiador dessa questão.

Com relação à comparação das duas intervenções, acho que em ambos os casos a exportação de modelos acaba sendo uma estratégia problemática no âmbito das relações internacionais. Tanto a União Soviética como os Estados Unidos pretendiam, sob a ótica da narrativa, exportar modelos e firmar presença em outros países. Esse é o primeiro aspecto em comum.

As diferenças são muito grandes também. A União Soviética entrou em apoio a uma revolução cujos pilares eram o estado laico, a educação universal e a reforma agrária. Os Estados Unidos, ao contrário, começaram a intervenção financiando um grupo terrorista, nos anos 1980, e depois fizeram outra intervenção, contra esse mesmo grupo, que deixou de ser funcional aos interesses americanos entre 2001 e 2021. E o mais importante: os americanos ficaram 20 anos no país e o entregaram com muito mais problemas do que quando eles assumiram. O fato substancial é que a economia do Afeganistão, que já era frágil, ficou ainda mais dependente da produção de ópio.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin. Foto: Alexei Druzhinin/Sputnik/AFP

CC: Por que a China decidiu reconhecer o Talibã como governo?

DP: Além da tradição da paz, há o princípio da autodeterminação. É bom lembrar que, quando Zhou Enlai proclamou os cinco princípios da coexistência pacífica, em 1955, a questão da paz e da autodeterminação tem sido muito importante para a política externa chinesa, embora eles tenham descarrilado em alguns momentos no período da Revolução Cultural.

Dito isso, as alternativas para a China seriam: reconhecer o governo e tentar dialogar para moderá-lo, inclusive para engajá-lo em algumas iniciativas de interesse da China; intervenção, e a experiência americana mostra que isso é muito difícil e problemático; e a outra opção, que é um modelo muito recorrente por parte dos Estados Unidos para lidar com países com os quais não tem afinidade, é o isolamento, o embargo e a sanção, outra estratégia cujos êxitos são baixíssimos – geralmente você fortalece a elite nacional, que tem isso como elemento de coesão contra um elemento estrangeiro. Não funcionou no Iraque, na Coreia, em Cuba, em nenhum lugar.

A estratégia chinesa é a mais pragmática: engajar, moderar e, a partir disso, estabelecer termos de convívio. A gente discorda de quase tudo, mas no que a gente concorda? Vocês cuidam da vida de vocês, e vocês não intervêm nos nossos assuntos, sobretudo na questão de Xinjiang. Vocês têm interesse de fazer parte de algum circuito da Rota da Seda? A gente tem interesse. Qual o compromisso que a gente quer? Que não seja uma força de desestabilização regional. E cada um cuida do seu quadrado.

Me parece a política mais razoável e realista, e mais em acordo com os princípios das Nações Unidas. “Ah, mas os direitos humanos.” Bom, os direitos humanos e as escolhas internas são tratadas, muitas vezes, de maneira hipócrita. A Arábia Saudita também é um emirado. Se tomarmos essa régua como pressuposto, o tratamento dado ao Afeganistão não pode ser muito diferente ao dado à Arábia Saudita. O Ocidente fica perplexo com o que ocorre no Afeganistão, mas não fica perplexo com a Arábia Saudita.

O presidente da China, Xi Jinping. Foto: Reprodução

CC: Não há algo que a China possa fazer para desenvolver políticas de direitos humanos no Afeganistão?

DP: Celso Amorim fala muito que você só consegue a confiança do interlocutor e, portanto, que ele cumpra alguns acordos, se você produzir afinidade de fato. Como pedir algo mais íntimo sem intimidade? Primeiro, você estabelece uma interlocução de confiança, aí você diz: olha, eu tenho muito interesse em investir em terras raras e promover o desenvolvimento regional, mas para isso a gente precisa moderar determinadas posturas. Embargar e colocar a faca no pescoço não dá entradas para pedir nada. A China pode dialogar com o Talibã por moderação, em prol do engajamento, do desenvolvimento e da integração regional. A ruptura e a ameaça implodem qualquer possibilidade de moderação.

CC: Os Estados Unidos dizem que intervieram no Afeganistão para lutar contra o terrorismo. Foram esses os seus reais interesses?

DP: Numa cadeia explicativa, o que menos explica é a captura do Osama Bin Laden e o combate ao terror, porque, se o terrorismo se organiza em rede, não se intervém territorialmente para combatê-la. Ninguém intervém e ocupa um Estado para combater o crime organizado. A Al-Qaeda é uma rede com vários pontos.

O que explica a intervenção no Afeganistão é o complexo industrial-militar, a expansão da projeção de poder americana no século XXI, as rotas de gás e o cerco à Rússia e à China. Tanto é verdade que depois vem a invasão no Iraque, que não tinha nenhuma relação com a Al-Qaeda, nem com o islamismo integrista. E depois é a Síria, e depois é a Líbia, países ou laicos ou antagônicos à Al-Qaeda e aos salafistas. Por fim, o Irã, do “eixo do mal”, é xiita e não tem nada a ver com o sunismo da Al-Qaeda.

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