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A Inglaterra já tem sua Evita Perón: a duquesa Meghan

Ela equilibra-se entre o luxo protocolar e o figurino casual que criou para mulheres trabalhadoras

Foto: Dominic Lipinski/ZUMA Press/fotoarena
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Em Evita Perón (1919-1952), a construção da imagem de uma primeira-dama protetora das olvidadas e dos descamisados iria requerer a estudada alternância entre dois figurinos: Dior ficava para as recepções de Estado, os banquetes, os concertos, os saraus, as viagens ao exterior; no dia a dia dos trabalhos assistenciais da Fundação Eva Perón e por ocasião dos discursos plebeus, recorria-se ao fardamento produzido por figurinistas anônimas, tailleurs de rígida severidade, terninhos em tons de chumbo ou tijolo, muito mais apropriados a vestir uma apparatchik do regime soviético. Porém, o casual tanto quanto a grife faziam Evita recender a elegância.

“Eu vesti apenas uma rainha: Eva Perón”, declarou Christian Dior, o estilista de nove entre dez rainhas. Evita retribuiu essa admiração, mas com direito a uma ou outra incursão passageira por Jacques Fath. Embrulhada em vison, aconchegada em arminho, tintilando em pingentes, a primeira-dama dos argentinos não se via traindo os que mal tinham o que vestir. Dizia: “Gosto de me vestir bem e estar bonita para meus grasitas [os mais humildes]”.

Em sua autobiografia precoce, La Razón de Mi Vida, foi além: “Afinal, sou uma mulher. Como a de qualquer dos infinitos lares de meu povo. Gosto das mesmas coisas que ela: jóias e peles, vestidos e sapatos… mas como ela prefiro que todos, na casa, estejam melhor do que eu. Como elas, gosto de aparecer sempre sorridente e atraente para meu marido”.

Uma diva vem sempre envolta em lendas e uma das mais recorrentes, na vida de Evita, dá conta de uma garota sonhadora que, no seio de uma família indigente, numa miserável aldeia de província, fantasia o futuro: “Só me casarei com um príncipe ou um presidente!” Verdade ou não, se ela chegou lá foi ao preço de sua obstinação e por força de seus méritos.

A duquesa em momento nobreza: o desafio de não diluir seu estilo / Foto: Gareth Fuller/AFP

Meghan Markle, nascida Rachel Meghan Markle em Los Angeles, Estados Unidos, 38 anos atrás, também não teve berço de ouro – sua mãe, assistente social negra, logo se separou do marido, um diretor de fotografia branco –, mas é altamente improvável que ela tenha proclamado, ou mesmo fantasiado, tal desejo de virar princesa. No máximo, princesa do celuloide. A atual Duquesa de Sussex, ela sim, muito mais que Evita Perón, seguiu uma trajetória de sucesso no entrenimento, como protagonista de filmes e de seriado em Hollywood.

Atriz, divorciada, plebeia, americana com sangue africano, Meghan não cumpria nenhum dos pré-requisitos para ingressar, en noblesse, no fechado clube da monarquia britânica. O surpreendente casamento com o príncipe Harry, o sexto na linha de sucessão ao trono da rainha Elizabeth, três anos mais novo que a consorte, apresentou a Meghan novos obstáculos no item sedução. Conquistado o príncipe, faltava conquistar a família real e a imprensa de escândalos. Seria, em outra escala, como se colocar no lugar de Evita chegando à Buenos Aires falocrata e misógina dos 1940’s.

A outsider mestiça foi abrindo espaço, com delicadas cotoveladas, em busca de um lugar que a singularizasse no picadeiro da nobiliarquia da dinastia originalmente germânica dos Saxe-Coburg und Gotha (o nome britânico Windsor veio socorrer às pressas a monarquia em 1917, quando passou a pegar mal, por culpa dos conflitos europeus, a origem verdadeira).

A realeza do Reino Unido é um business altamente lucrativo e de cada executivo seu requer-se uma função específica no quadro das representações simbólicas que capturam o imaginário dos súditos devotos. Assim, a rainha é a força tranquila, a delicadeza segura, fiel aos ritos, mas dona de um sereno senso de humor. O príncipe Philip é o escort silencioso que, se abre a boca, produz uma gafe. Charles, o eterno herdeiro aos 70 anos, casou-se com uma princesa de contos de fada, mas terminou por repudiá-la com humilhação, gastando o pouco carisma que lhe restava.

A princesa Diana foi o excruciante fenômeno midiático o qual hoje Meghan, a nora que não a conheceu, tenta com tenacidade não repetir. Di, na alegria ou na tristeza, tanto fazia, tinha de suprir a manchete diária dos tabloides com tiragens milionárias. Entrou para os anais do inventivo jornalismo britânico uma edição do The Sun de 1995, o ápice da melancolia da princesa rejeitada.

Naquele dia, o que se tinha de Diana era sua expressão compungida, bastante coerente com seu vestidinho de tom pastel, em visita a um hospital infantil. Sem sua manchete habitual, o editor esbarrou numa foto de Naomi Campbell chegando a um clube noturno. A top vestia um vaporoso vestido de tule vermelho que, ao soprar de uma brisa, reproduziu aquele efeito Marilyn Monroe do filme The Seven Year Itch (O Pecado Mora ao Lado). O editor abriu escandalosamente a foto de Naomi, fez, ao lado, o contraponto com a Diana taciturna no hospital e sapecou a manchete: DRESS RED, DI (Vista vermelho, Di). Em página interna, uma galeria de risonhas moçoilas, Diana entre elas, trajando vermelho-libido.

Os cronistas da monarquia – e eles existem aos montões, no papel, na televisão, nos blogs – gostam de avaliar pelo figurino os acertos e escorregões de suas altezas recém-chegadas. O tribunal da moda é implacável e Meghan logo entendeu o dilema que é se paramentar de acordo com o que se espera de uma duquesa sem omitir a própria identidade e o próprio estilo. De início, ressentiriam-se os críticos de que as camisetas de Meghan não ostentavam uma atmosfera suficientemente regal. Semanas atrás, houve quem se queixasse das 1.700 libras desembolsadas pela duquesa de Sussex numa echarpe que dá para achar, fácil, fácil, na feira de Camden Town. A bronca agora é que o casal Meghan-Harry gasta muito.

Evita Perón vestia Dior para agradar ao marido. Mas na hora de atiçar os descamisados o figurino parecia o de uma bolchevique

Evita Perón reencarnou de vez em Meghan Markle na semana passada, quando a Duquesa de Sussex apresentou, para uma marca beneficente, sua coleção “para mulheres trabalhadoras”. São trajes informais, mas de certa nobreza, que servem ao dia a dia de uma escriturária ou uma balconista; algumas peças se recomendam especialmente para entrevistas de emprego em tempos de economia bicuda. Todos os conjuntos custam menos de 100 libras, ou 508 reais. Modelos negras compunham o casting.

Mesmo a trabalho Meghan dribla o tédio. Nada a ver com a sogra deprê que não conheceu

Sem prejuízo da proposta popular da Smart Works, o côté alta moda de Meghan, igual ao de Evita, aflorou na semana no comovido tributo póstumo que ela prestou nas redes sociais, com o imponente selo @sussexroyal, a Peter Lindbergh, o fotógrafo germano-polaco que nos anos 1990 conferiu às supermodels a aura de requinte, dignidade e respeito de que careciam. A duquesa passara, ela também, pelas lentes de Lindbergh numa capa de Vanity Fair.

O parceiro tem correspondido. Harry, o filho caçula de Diana e Charles, sempre foi o irrequieto, desaforado, no cotejo com o irmão William, tendo chegado a ser flagrado, numa balada noturna, com um uniforme nazi. Houve um furacão de protestos e Harry desculpou-se. O quadro funcional da monarquia faculta ao casal Meghan-Harry um espaço de liberdade e de autonomia que é negado ao casal Kate Middleton-William, condenado pela hierarquia dinástica a ser exemplar, irremediavelmente careta. Afinal, William é o herdeiro do herdeiro.

Mesmo em serviço, Meghan estabelece uma diferença. Ela e sua alma gêmea foram recrutados em outubro passado para uma viagem à Austrália, Nova Zelândia e ilhas do Pacífico Sul, um desses tradicionais jobs de RP da realeza. A duquesa carregava na barriga o bebê Archie, mas foi além dos sorrisos protocolares e até dançou com as nativas. Parece que se divertiu. Ao contrário de Evita, Meghan não terá um balcão a seu dispor e não se deve esperar dela discursos que inflamem o proletariado. Contudo, para a Inglaterra ranzinza e intolerante do Brexit, o que Meghan faz já está de bom tamanho.

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