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A implacável onda de ‘boicote cultural’ à Rússia está indo longe demais?

Mesmo com posições contra a guerra, artistas são excluídos de eventos como retaliação do Ocidente a Vladimir Putin

A cantora russa Anna Netrebko, punida por suposto apoio a Vladimir Putin. Foto: Christoph de Barry/AFP
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As sanções contra a Rússia por conta da invasão à Ucrânia estão mobilizando até o setor cultural, incluindo o boicote por empresas e festivais a produções russas e a artistas.

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu com a prestigiada soprano russa Anna Netrebko. A artista de 50 anos não está mais nas próximas duas temporadas da Ópera de Nova York por seu suposto apoio a Vladimir Putin.

A nota do Metropolitan Opera foi categórica: “Não cumprindo a condição do Met de repúdio ao seu apoio público a Vladimir Putin enquanto ele faz guerra à Ucrânia, a soprano Anna Netrebko se retirou de suas próximas apresentações no Met em abril e maio, bem como na próxima estação”.

O gerente geral da Ópera, Peter Gelb, disse lamentar a “grande perda artística” e elogiou a soprano, mas deixou clara a prioridade de considerar o conflito: “É uma das maiores cantoras da história do Met, mas com Putin matando vítimas inocentes na Ucrânia, não havia caminho a seguir”.

Netrebko não fez manifestações a partir da sua saída da ópera. Porém, em um texto divulgado em 26 de fevereiro em sua rede social, dois dias após o anúncio da operação por Putin, a artista havia dito não apoiava a guerra.

“Sou contra esta guerra. Sou russa e amo o meu país, mas tenho muitos amigos na Ucrânia, e a dor e o sofrimento agora partem o meu coração. Eu quero que essa guerra acabe e que as pessoas possam viver em paz. É por isso que espero e oro.”

Na sequência, acrescentou:

“Forçar artistas, ou qualquer figura pública, a expressar suas opiniões políticas em público não é correto. Esta deve ser uma escolha livre. Como muitos dos meus colegas, não sou uma pessoa política. Não sou especialista em política. Eu sou uma artista e meu propósito é unir as pessoas através das divisões políticas.”

No mundo do cinema, o Festival de Glasgow puniu dois filmes com exclusão do catálogo deste ano: No Looking Back e The Execution.

A organização alegou que a retirada dos longas-metragens não se dava por opinião sobre os pontos de vista e opiniões dos criadores desses filmes, mas porque “seria inadequado proceder normalmente com essas exibições nas circunstâncias atuais”.

A sanção ocorreu mesmo que os diretores tenham sido solidários à Ucrânia.

Kirill Sokolov, de No Looking Back, evidenciou na sua rede social que era contra a operação russa na Ucrânia. O artista chegou a pedir desculpas aos ucranianos, apelou por diálogo e disse considerar que “o mundo de um estado soberano independente está agora sob fogo”.

Lado Kvatanya, de The Execution, seguiu a mesma linha: “Eu não escolhi esse presidente! Eu não escolhi esta guerra!”, escreveu ele em sua conta no Instagram, em 24 de fevereiro.

O Festival de Estocolmo também baniu neste ano todos os filmes com financiamento russo, e o Festival de Cannes não aceitará a presença da delegação russa.

A lista do boicote não para: as gigantes do entretenimento Disney, Paramount, Sony e Warner cancelaram as suas estreias de filmes na Rússia, enquanto a Netflix suspendeu as suas quatro produções em andamento no país (segundo a revista Variety), e o Spotify chegou a fechar o seu escritório da Rússia e a remover conteúdos das agências estatais Russia Today e Sputnik de sua plataforma.

A mobilização contra as produções culturais da Rússia provocam medo em organizações artísticas ligadas ao país e localizadas nos Estados Unidos. Profissionais e instituições têm se manifestado publicamente para deixarem claro que não concordam com a invasão e relatam à imprensa temores de terem a identidade russa associada às posições políticas do governo.

A onda de cancelamento, no entanto, parece estar ignorando essas manifestações e, por isso, tem recebido críticas. No jornal britânico The Telegraph, o colunista Sam Ashworth-Hayes chamou o movimento de “guerra cultural à Rússia” como um “terrível erro” e que não poderia servir como um veículo para a “russofobia”.

Membro de uma organização de compatriotas russos no Brasil, Paulo Roberto Soares diz que vê xenofobia na prática de cercear a atividade de artistas do país por conta da operação do Kremlin.

Ele argumenta que a mesma onda de boicote não é vista quando outros países, como os Estados Unidos e os europeus, são responsabilizados pela provocações de guerras, em regiões no Oriente Médio e na África.

Além disso, Soares afirma que os profissionais, como músicos, diretores de cinema e até atletas esportivos, devem sofrer danos financeiros e morais com a conduta.

“Quando falamos de artistas que vivem disso, isso causa problemas financeiros e também de reputação, porque são tratados como criminosos por não terem emitido uma opinião, ou então não terem emitido ‘a opinião correta’ pela perspectiva ocidental”, opina o dirigente, em entrevista a CartaCapital.

Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, diz que a sanção ao mundo artístico em uma guerra não é algo novo, mas é raro e ocorre com rapidez inédita e mais amplitude neste caso.

O pesquisador lembra, por exemplo, que a África do Sul já foi alvo dessas medidas na época do apartheid, mas os resultados não foram muito efetivos porque o banimento de produções culturais do país não atingia o regime.

Para o especialista, é possível dizer que há contradição por parte do Ocidente ao condenar o governo russo por restringir a liberdade de expressão e em seguida agir com barreiras semelhantes.

Além disso, países como Arábia Saudita, cita ele, são conhecidos por apresentar violações aos direitos humanos em seus regimes e nem por isso sofrem essas retaliações dos Estados Unidos e da comunidade ocidental.

Mas, ao mesmo tempo que se trata de um “cerceamento seletivo”, Brites considera que há um contexto de pressão sobre a Rússia para interromper a operação militar na Ucrânia. De algum modo, diz ele, é típico do “jogo da guerra” haver iniciativas que limitem o inimigo de contar a sua narrativa.

“Quando se está em um momento de guerra, há uma disputa pela construção do que é verdade e das afirmações que definem o conflito”, analisa o professor. “De certa forma, é uma batalha sobre o conhecimento daquela guerra. Então, faz sentido que exista alguma pressão nesse sentido, embora a gente possa discutir o boicote indiscriminado.”

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