3ª Turma

Três tipos de presunção da inocência

A defesa da prisão em segunda instância pode ser vista como uma tentativa de instrumentalização do sistema jurídico para fins políticos.

Foto: Rodrigues Pozzebom
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Podemos identificar duas posições no debate sobre a prisão após condenação em segunda Instância. Os que defendem essa medida argumentam que ela seria uma forma adequada de se combater o que eles classificam como uma cultura da impunidade. Subjacente a essa posição está a premissa segundo a qual regras jurídicas influenciam diretamente a ação dos indivíduos, impedindo ou desestimulando comportamentos criminosos. A consciência de que alguém só poderá ser condenado após o esgotamento das instâncias recursais seria, para eles, um estímulo à delinquência. A possibilidade de prisão após condenação em segunda instância permitiria uma punição mais imediata daqueles que cometem crimes, situação que preveniria esse tipo de problema e legitimaria nosso sistema judiciário, uma instituição que, segundo muitos, indiretamente estimula a criminalidade em função da sua morosidade. Para os defensores dessa perspectiva, a ideia de que a presunção da inocência deve ser observada até o esgotamento de todas as instâncias recursais é algo que contribui para a fragilização da moralidade pública.

Os que são contrários a essa modificação afirmam que a prisão após condenação em segunda instância viola a Constituição Federal, sendo que o judiciário deve observar a presunção da inocência até o transito em julgado em última instância. Esse preceito, afirmam esses indivíduos, deve ser visto como um elemento condensador do princípio do devido processo legal, motivo pelo qual ele não pode ser restringido porque permite a correção de possíveis erros processuais que podem ocorrer durante o julgamento de um caso. Restringir a liberdade de alguém seria algo que só deveria ocorrer depois da revisão das decisões por instâncias superiores, o que poderia sanar possíveis problemas em um processo judicial. Esse princípio está pautado na ideia de liberdade como um valor central da ordem democrática, razão pela qual todos devem ser presumidos inocentes. Mais do que isso, ele reconhece ainda que há uma grande desproporção entre o poder estatal e o espaço de ação individual, o que exige do Estado a comprovação legítima e inequívoca da culpabilidade do acusado.

Eu me filio aos que esposam essa última posição, mas creio que a defesa da presunção da inocência deve ir além da menção à previsão inequívoca presente no texto constitucional. É preciso também analisar esse princípio a partir de alguns conceitos importantes da Filosofia do Direito, da Sociologia do Direito e da Criminologia Crítica. Não creio que possamos conceber o processo penal como um sistema de procedimentos cuja racionalidade permite uma análise adequada de todas as dimensões de um caso. Também não acredito que os procedimentos que ele regula contêm todos os elementos necessários para a proteção da liberdade individual, nem que a consciência da ilicitude deterá a vasta maioria das pessoas de cometer crimes. Como tem sido amplamente demonstrado por especialistas nas áreas acima mencionadas, a aplicação ou a efetividade de normas jurídicas depende das forças institucionais e políticas nas quais elas estão envoltas.

Não podemos separar o Direito das relações de poder que determinam sua interpretação e aplicação.

Defenderei a hipótese de que a pretendida alteração das garantias processuais presentes na nossa Constituição Federal não modificaria nossa realidade social. Esse não é um meio adequado de combate à impunidade. Mudanças legislativas só são efetivas se precedidas ou seguidas de mudanças na moralidade pública e na cultura das instituições. A prisão após condenação em segunda instância afetaria apenas aqueles cujo status social os torna clientes preferenciais do Direito Penal. O sistema jurídico não opera de acordo com uma racionalidade inerente às normas penais, mas sim a partir da vontade das pessoas que as interpretam e aplicam. Essas pessoas não atuam a partir das noções de neutralidade e objetividade, mas, muitas vezes, enquanto atores ideológicos que interpretam e aplicam o Direito a partir dos seus próprios interesses políticos e também daqueles que eles representam. Esse processo não pode ser pensado fora das relações hierárquicas de poder nas quais os vários personagens envolvidos em um processo estão inseridos. 

É preciso, primeiro, fundamentar a hipótese apresentada no parágrafo anterior. A escola do Legal Realism surgiu como uma reação ao positivismo clássico, uma forma de pensamento jurídico baseada na noção de que juízes são sujeitos que interpretam o Direito de forma neutra e objetiva. Os realistas não estavam interessados em abstrações lógicas derivadas de normas e precedentes, mas na forma que as cortes realmente decidem, o que pode ter como fundamento leis ou fatos escolhidos por juízes interessados em dar uma ou outra direção a questões que possuem ramificações culturais e políticas complexas. Seus autores afirmavam que juízes atuam como atores políticos escolhendo os elementos mais adequados para justificar suas decisões. Isso ocorre porque eles sempre utilizam parâmetros que estão fora do Direito para decidir conflitos jurídicos. Por exemplo, o interesse em manter o sistema de privilégios raciais em todas as dimensões da vida social fez com que o sistema judiciário americano interpretasse o princípio da igualdade de forma a permitir a preservação da segregação racial. A defesa da prioridade dos interesses do capital em relação a direitos sociais também levou essa mesma instância a eliminar restrições da jornada de trabalho no início do século passado.

A tese de que argumentos políticos muitas vezes formam a base para decisões judiciais foi incorporada pelos autores do movimento Law and Society.  Muitos dos intelectuais que desenvolveram essa escola filosófica argumentavam que Direito e sociedade formam um sistema no qual normas jurídicas influenciam a moralidade social e a moralidade social determina a produção, operação e aplicação das normas jurídicas. Por esse motivo, o Direito pode ser um elemento que racionaliza o poder e também um meio de exercício desse poder. 

Em tempos mais recentes, intelectuais ligados ao Critical Legal Movement e à Critical Race Theory, escreveram vários artigos nos quais demonstram como juristas falam dos lugares que eles ocupam dentro das estruturas de poder nas quais estão situados. Além disso, juízes são capazes de manipular o sistema jurídico para que ele possa legitimar seus projetos ideológicos ou dos grupos que eles representam. Os tribunais são então uma instância à qual grupos sociais recorrem para universalizar seus interesses. Determinar os sentidos e a aplicação de normas legais significa poder direcionar o debate publico sobre os mais diversos tópicos. Podemos dizer que todas essas escolas endossam uma tese comum: há uma imensa diferença entre o Direito presente nas diplomas legais e aquele efetivamente praticado por seus operadores. 

As teses defendidas por essas escolas de pensamento apresentam elementos para observarmos como o princípio da presunção da inocência adquire significados bem distintos dentro de discursos sociais e práticas institucionais. Ao lado da concepção teórica apresentada acima, há outra que desempenha um papel extremamente importante na aplicação das normas penais. Não se discute nesse segundo tipo de presunção da inocência a proteção da liberdade do acusado. O que está em jogo é a necessidade de aplicação de uma sanção penal ao seu comportamento tendo em vista seu pertencimento a grupos dominantes, uma vez que o status social privilegiado implica a sua inocência. Esse status determinará a percepção da sua culpabilidade, da relevância do crime cometido, como também o valor social da vítima. Esse tipo de presunção da inocência também é produto da possibilidade que esses indivíduos têm de utilizar o status privilegiado que possuem para influenciar o sistema judiciário. Ele também expressa as percepções que operadores do Direito têm dos membros dos grupos majoritários e da forma como a própria sociedade interpretará atos criminosos a partir das diferenças de status  entre os grupos. Em resumo, o status privilegiado de um indivíduo indica a ausência de sua culpabilidade. 

Pude observar a existência desse segundo tipo de presunção da inocência durante a pesquisa jurisprudencial sobre racismo e injúria que realizei nos tribunais de justiça e nos tribunais regionais do trabalho para escrever meu livro Racismo Recreativo. Muitos homens brancos e muitas mulheres brancas que cometem esses crimes estão convictos, antes do início do processo, de que seus atos criminosos não terão quaisquer consequências jurídicas. Assim, eles ridicularizam a intenção das vítimas de buscar a condenação judicial deles . Estão presentes nos autos analisados afirmações do tipo “Olhe para mim, eu sou branco!”, “Pode chamar a polícia, crioulo. Você acha que vai acontecer alguma coisa comigo? Eu sou médico!”, “Não adianta chamar a polícia porque meu tio é juiz! Ele vai e me solta na mesma hora, preto otário!”. Esses criminosos estão cientes de que vivem em uma sociedade que estimula o racismo, que eles possuem um status social privilegiado, que esse status os beneficia em todas as situações e que isso também ocorrerá quando cometerem crimes contra pessoas negras. Eles sabem que pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas sempre se articulam para inocentar brancos acusados de racismo e que isso permitirá que se mantenham imunes a sanções penais, além de continuarem gozando de uma imagem social positiva.

Como essas pessoas se defendem nesses processos judiciais? Boa parte de seus argumentos gira em torno da premissa da suposta superioridade moral das pessoas brancas. Vários indivíduos acusados de racismo e injúria recorrem à narrativa da democracia racial como prova da irrelevância do racismo entre nós. A maioria deles menciona supostos amigos ou parentes negros, o que seria evidência de que a acusação de racismo ou injúria não poderia ser verídica. Afinal, elas mantêm relações sociais com pessoas negras, sendo que algumas delas até permitem que negros cortem seus cabelos. Esse tipo de argumento está especialmente presente quando a injúria assume a forma de humor racista. Os acusados tentam escamotear o fato que contam piadas racistas para obterem gratificação psicológica e também para degradar negros a partir do argumento de que o humor sempre tem um caráter benigno. Os autores desses crimes tentam convencer juízes brancos de que a condenação de uma pessoa branca por racismo compromete a reputação de todas elas, o que deveria ser evitado. Eles esperam que os juízes brancos desenvolvam uma empatia racial com elas e que considerem a demanda por respeito da vítima como algo que não tem relevância moral ou jurídica.

Enfim, elas acreditam que ser branco opera como uma forma de presunção da inocência; elas esperam que seu status racial privilegiado as imunize de qualquer tipo de sanção jurídica

Embora pessoas brancas sejam efetivamente condenadas por injúria e racismo, a expectativa de muitas delas é frequentemente confirmada pela atuação do judiciário. Muitos membros dessa instituição, integralmente controlada por homens brancos heterossexuais de classe alta, categorizam homicídios e tentativas de homicídio motivadas por ódio racial como lesão corporal, desclassificam crimes de racismo para injúria racial e de injúria racial para injúria simples. Outros se recusam a reconhecer o uso do humor racista como um caso de injúria racial porque ele não pode ser visto como expressão de ódio. Alguns deles me disseram pessoalmente que condenar pessoas brancas por crimes de injúria e racismo pode impedir a ascensão profissional, exemplo de como membros do grupo racial dominante podem subordinar o sistema judiciário aos seus interesses. 

A presunção da inocência branca não opera apenas em processos judiciais sobre racismo e injúria. Ela é um pressuposto central da forma como muitos policiais, promotores e juízes atuam. Pessoas brancas não são vítimas de prisões arbitrárias com a mesma frequência que negros são, elas são quase sempre consideradas como usuárias quando pressas com posse de drogas, não são mortas por balas perdidas e não são acusadas de envolvimento com o tráfico simplesmente por morarem em áreas periféricas das nossas cidades. Aliás, como amplamente noticiado, morar em áreas nobres significa que elas sempre serão abordadas de forma respeitosa. Outras recebem tratamento preferencial por não parecerem com o estereótipo do bandido, imagem culturalmente associada a negros. A presunção da inocência branca, fundamentada na ideia da superioridade moral inata dos membros do grupo racial dominante, permite que pessoas brancas com passagem pelo sistema penitenciário ganhem salários mais altos do que pessoas negras que nunca tiveram qualquer envolvimento com a justiça penal.  

Há um terceiro tipo de presunção da inocência que opera de maneira bem particular. Ele também supostamente existe para regular a ação das instituições estatais, mas, na verdade, serve apenas para prestar legitimidade a ações discriminatórias. Portanto, não estamos falando da presunção da inocência do acusado, mas sim da presunção da inocência de agentes estatais. Esse terceiro tipo tem uma natureza meramente retórica; ele procura apenas justificar ações estatais que encontram legitimidade no desprezo racial generalizado presente na sociedade brasileira. Esse terceiro tipo do princípio sob análise opera efetivamente como uma presunção da culpabilidade, o que exprime a ideia de que membros de minorias raciais têm propensão natural para o crime, motivo pelo qual eles devem estar sob o controle constante do sistema judiciário. Esse terceiro tipo de presunção da inocência também está baseado na diferença de status que grupos possuem dentro de uma dada sociedade, mas esse ele atua contra os que estão em uma situação de subordinação social.

As manifestações da presunção da inocência de agentes públicos e a da culpabilidade de minorias raciais são muitas e cotidianas. No caso do Brasil, elas afetam principalmente pessoas negras. Estereótipos raciais são estrategicamente criados e reproduzidos pelos membros do grupo racial dominante para referendar a ideia da periculosidade do homem negro. Eles legitimam então a vigilância e a violência contra minorias raciais em todas as esferas da vida social, seja no espaço público, seja no espaço privado. Enquanto a presunção da inocência branca permite que membros do grupo racial dominante possam responder processos em liberdade após serem surpreendidos com dezenas de quilos de maconha nos seus veículos, mulheres negras com algumas gramas da mesma droga são condenadas a vários anos de prisão porque, segundo membros do nosso judiciário, elas precisam aprender uma lição. Pessoas negras são as principais vítimas de prisões arbitrárias e de assassinatos por policiais. Muitas pessoas brancas e muitas instituições controladas por pessoas brancas, mobilizadas pelo desprezo racial característico da nossa sociedade, afirmam que essas manifestações de racismo institucional são legítimas. Elas argumentam que ações como as da chacina de Paraisópolis deveriam ocorrer todos os dias para acabar com os supostos criminosos, ou seja, para acabar com negros. Para garantir a presunção da inocência dos agentes estatais envolvidos, atos bárbaros dessa natureza são classificados como erros operacionais. Há mais. A presunção da culpabilidade faz com que muitas mulheres brancas vejam todos os homens negros como uma ameaça às suas vidas, razão pela qual atravessam para o outro lado da rua assim que veem alguém dessa raça na mesma calçada. A ideia da degradação moral natural de negros também dificulta acesso a empregos, o que os empurra para a marginalização e leva muitos deles para a criminalidade. Entretanto, o fato óbvio de que a criminalidade é socialmente produzida permanece encoberta. Em resumo, muitas pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas criam e reproduzem estereótipos racistas e passam a acreditar que eles existem como algo independente da atuação delas. Isso permite que elas neguem qualquer tipo de responsabilidade sobre a situação de desigualdade estrutural que temos no Brasil.

Essas reflexões me levam a defender a seguinte tese. Não haveria absolutamente nenhuma mudança social se a prisão após condenação em segunda instância fosse possível no nosso País. Esse debate decorre da grande visibilidade das discussões sobre crimes de corrupção nos meios de comunicação. Aqueles que recorrem à corrupção para alcançar objetivos individuais ou setoriais não deixariam de cometer esses crimes porque estão convictos que seu status racial e seu status de classe os imunizam de qualquer tipo de sanção penal. Da mesma forma que ocorre nos casos de injúria e racismo, esses indivíduos podem mobilizar o poder que possuem para influenciar o desenlace de processos judiciais. Eles podem submeter o sistema jurídico aos seus interesses como casos recentes de lawfare demonstram muito claramente. Como afirmam vários especialistas em criminologia, a reprovação social de um crime depende do contexto histórico e das pessoas que o cometem. Nossa sociedade tem e sempre teve uma imensa tolerância com a corrupção, principalmente quando ela privilegia membros dos grupos sociais dominantes. Atos de corrupção são vistos como algo grave apenas quando seus autores quando se tornam inimigos políticos dos membros dos grupos sociais dominantes que ocupam posições de poder em um determinado momento. 

A defesa da prisão após condenação em segunda instância pode ser vista como uma tentativa de instrumentalização do sistema jurídico para fins políticos.

Além de poder atingir pessoas brancas de status social privilegiado eleitas como inimigos políticos, uma mudança dessa natureza apenas ampliaria o número de pessoas negras e de pessoas pobres nas nossas prisões. A cultura da impunidade não pode ser atribuída às nossas normas penais. Elas são apenas comandos sociais. Muitos as culpabilizam como se elas fossem atores sociais que possuem vontade própria, como se fossem agentes que determinam a realidade. Nossa cultura da impunidade está relacionada com a ausência de uma cultura pública democrática e republicana entre nós. 

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