3ª Turma

Solidariedade, Previdência e a Constituição

Há 30 anos, a cada novo governo, uma nova proposta que incide sob os mesmos erros e convoca os mesmos argumentos para se justificar

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No âmbito dos debates sobre a PEC n. 06/2019, o projeto de reforma da previdência apresentado pelo Governo Bolsonaro, temos apontado que a proposta põe fim ao chamado pacto intergeracional ou solidariedade entre as gerações, representando um grave risco à estabilidade e à manutenção da política pública de previdência social organizada sob o modelo de repartição.

Para compreender a extensão e a profundidade desse ataque aos direitos previdenciários, talvez seja importante começar pontuando que a proteção social, gênero que congloba a previdência, é classificada como um direito humano em tratados e convenções internacionais, bem como na Constituição Federal de 1988. O grau de importância consagrado à previdência social decorre do reconhecimento de que toda pessoa tem direito de gozar de uma velhice com dignidade, na qual o afastamento do mercado de trabalho não represente o ingresso na condição de miséria ou indigência, verificando-se que os direitos previdenciários constituem uma conquista civilizatória do capitalismo.

É nesse sentido, portanto, que devemos compreender a assunção da garantia de proteção previdenciária por parte do Estado, constituindo regimes previdenciários obrigatórios organizados sob o sistema de repartição. Essa formatação é o que determina o caráter social da previdência, uma vez que se estrutura a partir da ampla solidariedade entre a classe-que-vive-do-trabalho, fazendo com que as contribuições vertidas pelos trabalhadores em atividade financiem as aposentadorias e benefícios vigentes para aqueles que precisaram se afastar do trabalho em razão de contingências sociais, tais como enfermidades incapacitantes, gravidez, idade avançada etc.

Nesse ponto, convém ressaltar que o direito à proteção previdenciária esteve sempre vinculado ao trabalho, isto é, ao reconhecimento da contribuição pessoal para a produção da riqueza coletiva, tanto que, historicamente, a política pública de previdência no Brasil e no mundo estruturou-se a partir da categoria tempo de serviço: até a EC n. 20/1998, o que assegurava o direito de gozo de uma aposentadoria era a comprovação de determinado número de anos de trabalho.

Esse entrelaçamento entre previdência e trabalho como opostos complementares na garantia da sobrevivência e da dignidade da família proletária fica mais evidente com o estabelecimento da contribuição tripartite, isto é, com a determinação constitucionalmente prevista de que empregados, empregadores e também o próprio Estado são responsáveis pelo financiamento da política previdenciária.

Esse novo paradigma organizativo, que tem por fundamento a categoria do trabalho como criador de toda a riqueza socialmente produzida, já torna, por si só, obsoleta a perspectiva de tratar a previdência como um “seguro social”, em que o trabalhador individualmente considerado aparece como único responsável pelo financiamento de sua aposentadoria.

Todavia, a superação completa da categoria “seguro social” como forma de compreensão e efetivação da política pública previdenciária se firma com a Constituição Federal de 1988, que traz como matriz identitária a previsão de um sistema de seguridade social, conglobando os direitos à saúde, previdência e assistência social.

A determinação de que a seguridade social seja financiada “por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios” (art. 195 da CF), o princípio da diversidade da base de financiamento (art. 194, VI da CF) e sua materialização na forma das contribuições sociais, previstas nos incisos do art. 195 da CF, são evidências da escolha constitucional pelo aprofundamento da lógica de solidariedade como resposta estatal às mudanças demográficas – que já eram realidade no contexto internacional e já se anunciavam no brasileiro – bem como às alterações no mercado de trabalho.

Isto é, por tomar em conta o fato histórico de que a configuração do mercado de trabalho brasileiro sempre esteve caracterizada pelo alto índice de informalidade e precariedade dos vínculos, e exatamente por reconhecer que o número de pessoas idosas tendia a crescer, tal como também tendia a aumentar o número de trabalhadores desempregados, que a Constituição Federal de 1988 cria o sistema de seguridade social, fazendo-o não depender exclusivamente das contribuições sobre a massa salarial.

Nesse sentido, ao contrário do que dizem seus críticos, a Constituição foi extremamente perspicaz no planejamento de longo prazo, antevendo tendências e antecipando soluções nos marcos da solidariedade social, ou seja, da cidadania.

A partir dessa análise, podemos afirmar que é do interesse de todo aquele que vive do seu trabalho preservar o sistema de seguridade social que visa assegurar saúde pública para todos, serviços e benefícios previdenciários para àqueles que podem contribuir e assistenciais para quem deles necessitar. Nesse sentido, um sistema previdenciário público organizado sob o modelo de repartição solidária é um mecanismo para garantir o acesso à aposentadoria após uma vida inteira de trabalho, sendo requisito para a possibilidade de uma velhice com dignidade para empregados, trabalhadores autônomos, pequenos comerciantes, microempreendedores, etc.

Todavia, também é preciso reconhecer que é do interesse dos grandes proprietários de terras, dos grandes industriários e dos empresários do mercado financeiro esvaziar a seguridade social e, por meio da privatização, transformar a aposentadoria numa nova mercadoria a ser comercializada, uma vez que não dependem dos benefícios e serviços por ela prestados, que, sob sua ótica, representam apenas “custos de produção”.

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É por essa perspectiva do conflito de interesses, da absoluta diferença de perspectivas de futuro e das desigualdades abissais de patrimônio e renda que precisamos reinterpretar os argumentos que apontam não só a necessidade, mas a urgência em se aprovar uma reforma da previdência no Brasil. Ora, há 30 anos estamos aprovando sequencialmente “reformas da previdência” que se pautam pela lógica do “seguro social”, aumentando tempos de contribuição e requisitos para acesso aos benefícios e diminuindo sistematicamente seus valores.

Há 30 anos, a cada novo governo, uma nova proposta que incide sob os mesmos erros e convoca os mesmos argumentos para se justificar.

Talvez tenha chegado o momento de nos perguntarmos se não estamos “reformando errado”, afinal, a perda sistemática de direitos previdenciários pelos trabalhadores e trabalhadoras jamais, em todo esse tempo, representou melhora da qualidade dos serviços públicos prestados ou um aumento do nível de segurança quanto ao seu futuro, na verdade, bem ao contrário.

Nesse sentido, no debate sobre a PEC n. 06/2019, é importante ressaltar que as projeções apocalípticas sobre a proporção entre ativos e inativos não levam em conta, por exemplo, o enorme contingente de trabalhadores informais, cuja inclusão previdenciária via crescimento econômico e geração de empregos formais, poderia representar uma alternativa a ser submetida ao debate público, mas não, o caminho traçado pela institucionalidade vai em sentido oposto: com a reforma trabalhista, especialmente com a regulação e o aumento do trabalho intermitente, fragilizam-se ainda mais as bases contributivas, o que aponta para novos ciclos de “reformas da previdência” num futuro bem próximo.

No tocante à questão do desemprego estrutural, é sempre importante lembrar que muito embora o número de pessoas empregadas possa ter diminuído, a mecanização e o avanço tecnológico só fizeram crescer a produtividade do trabalho, como demonstra o aumento exponencial da riqueza coletivamente produzida e cada vez mais individualmente apropriada. Uma reforma tributária que visasse a taxação direta de renda e patrimônio é outra alternativa que precisaria estar posta no diálogo democrático sobre o tão propalado “déficit da previdência”, mas, convenhamos, é mais fácil cortar na carne – sobretudo, na carne negra – de quem já se aposenta com valor médio R$ 1.336,29.

Vemos, portanto, que a solidariedade como matriz organizativa da previdência que protege a classe-que-vive-do-trabalho nos coloca de frente para a seguinte questão civilizatória: qual a nossa proposta, enquanto sociedade, para todos e todas que forem “velhos demais” para permanecer num mercado de trabalho ultra excludente e marcado pelo preconceito etário, mas “novos demais” para se aposentar segundo os padrões de quem concebe direitos previdenciários como “custo”? A Constituição Federal de 1988 tem como resposta a seguridade social, a PEC n. 06/2019, a barbárie de cada um por si e o Mercado contra todos.

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