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Quem regula o Supremo?

O STF, que deveria proteger a Constituição, é o primeiro a afrontá-la na dança política, embora mascarado pela sua pseudopurificação

Luiz Fux em lançamento de livro. Foto: Felipe Sampaio/STF Luiz Fux em lançamento de livro. Foto: Felipe Sampaio/STF
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O caso é um velho conhecido dos apreciadores de questões de lógica. Ficou conhecido como o paradoxo do barbeiro, citado[1] pelo matemático, filósofo e lógico Bertrand Russell, para demonstrar, de forma menos academicista e mais acessível, os seus estudos sobre teoria dos conjuntos. Em específico, trata-se de demonstração de complexa formulação matemática, em que não é possível um conjunto ser o conjunto de todos os conjuntos, porque se estaria diante de hipótese formalmente absurda, em que os elementos que compõem um conjunto seriam maiores que ele próprio, que os contêm.[2]

Mas voltemos ao caso do barbeiro, que irei atualizar do seguinte modo: há uma pequena cidade onde apenas uma mulher é maquiadora. Neste local, as pessoas que se maquiam devem recorrer a duas situações: ou se maquiam sozinhas ou vão à maquiadora. Existem duas únicas hipóteses para as pessoas maquiadas dessa cidade e, por conclusão lógica, a maquiadora é aquela que maquia todas as pessoas que não se maquiam sozinhas. O desafio, aparentemente simples, é: afinal, quem maquia a maquiadora?

Se existem somente dois conjuntos possíveis: a) as pessoas que não são maquiadas pela maquiadora, porque se maquiam sozinhas; b) as pessoas que são maquiadas pela maquiadora, já que não se maquiam sozinhas; a pergunta por quem maquia a maquiadora leva ao paradoxo, pois, de acordo com as afirmações acima, a maquiadora não se enquadra no primeiro conjunto “a”, porque ela – ao se maquiar – acaba sendo maquiada pela maquiadora, que é ela mesma, e o mesmo se aplica ao conjunto assinalado como “b”, porque se ela não se maquia a si própria – ou seja, não pertence ao conjunto “a” – então ela, que é a maquiadora, deve maquiar a si mesma. A maquiadora está e não está simultaneamente nos conjuntos “a” e “b”. Esse, aliás, é o paradoxo: cria-se looping infinito, que coloca em questão o problema da autorreferência.[3]

Quem maquia a maquiadora?

Diante disso, depois dessa longa, mas, igualmente, necessária introdução, é que proponho o seguinte desafio de lógica: a) Sendo o STF a organização que defende e protege a Constituição, inclusive quanto ao balanço entre direito e democracia, regulando, no Estado Democrático de Direito, as hipóteses de agressão à democracia; b) Se o STF agredir a democracia; então: quem regulará o Supremo Tribunal Federal?

A resposta para essa questão, diferentemente do que aparenta, não é algo simples ou fácil. Talvez sequer haja um esboço para ela. Existe, certamente, ao menos por parte da postura crítica perante as organizações do poder judiciário, a tentativa de repensar os seus formatos – e, se vemos um problema, que, ao menos, falemos sobre ele! Então, vamos ao paradoxo de Russell, pedindo licença para reatualizá-lo: existe em um país apenas uma organização que defende a Constituição. Neste local, quem quer ser protegido pela Constituição, deve recorrer a duas situações: ou se cumpre, sozinha, a Constituição, ou recorre-se ao Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, existem dois únicos possíveis conjuntos para a proteção da Constituição nesse país e conclui-se que o STF é aquele que protege a Constituição quando ela não é cumprida sozinha. Os dois conjuntos possíveis são: a) aqueles casos em que se cumpre a Constituição e, que, portanto, não tem a necessidade de ser protegida pelo STF; b) aqueles casos em que não se cumpre sozinha a Constituição e, desse modo, o Supremo deve protegê-la.

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O desafio de lógica, aparentemente simples, é: mas afinal, quem protege a Constituição contra o Supremo Tribunal Federal?

Ministro Luís Roberto Barroso. Foto: Supremo Tribunal Federal

O velho problema do poder do judiciário nunca foi tão problemático, especialmente em tempos em que o STF, a fim de manter e assegurar os avanços pós-Carta Constituinte de 1988, deverá assumir o seu papel de verdadeiro guardião, resguardando os espíritos da lei constitucional. Se os ameríndios, em época de temíveis retrocessos ao meio ambiente, em que essa questão nunca foi tão urgente ou esteve tão em voga, repetem incessantemente que não são os defensores da floresta, mas são eles mesmos a floresta, o mesmo ocorrendo com os defensores da água, que repetem que não são seus guardiões, são eles próprios a água,[4] talvez – apenas talvez – estejamos falando de certo ar do tempo em que devemos ser os espíritos da Constituição, sob pena de asfixia, isso é, se não tomarmos o fôlego necessário, pois, junto a ele, vem o prenúncio de um tempo em que o guardião da Constituição está em clara decadência.

Adaptado para nosso próprio mito – branco, cristão, ocidental etc. – se no princípio era o Verbo e o Verbo estava com o Juiz, e o Verbo era o Juiz,[5] que repensemos o Verbo e o Juiz! Aliás, que, logo de início, o Juiz se torne um juiz e que o Verbo se torne um verbo…

A chuva das barbáries que acontecem no Supremo – já sob intervenção de poderes indizíveis – virou uma tempestade, com efeitos avassaladores! Os conflitos institucionais da cúpula do Judiciário, no apagar das luzes de 2018, em véspera de recesso, foram reacendidos em decisão monocrática expedida pelo ministro Marco Aurélio, que, ao sofrer boicote do plenário durante todo o ano de 2018, que trancou o julgamento colegiado da ADC 54, resolveu boicotá-lo em retorno – expedindo decisão liminar não encaminhada ao órgão. Por sua vez, o ministro Marco Aurélio sofreu novo boicote, desta vez pelo ministro presidente Dias Toffoli, que, embora incompetente para julgar recursos da decisão do ministro, assim o fez, expedindo decisão monocrática cassando outra decisão monocrática – a liminar. O direito, onde ele está? Ninguém sabe, ninguém viu.

Leia também: Quantos absurdos o STF vai protagonizar só para manter Lula preso?

Dias Toffoli, presidente do STF em reunião com presidentes dos Tribunais de Justiça de todo o país. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil).

A controvérsia foi gerada pela interpretação, no mínimo, questionável – isso para ficarmos no mínimo – do princípio da presunção da inocência, quando os ministros fizeram política e ratificaram a manutenção da prisão após a condenação em segunda instância, em clara afronta à Constituição.

Soma-se a isso o poder sem limites das decisões monocráticas, através das quais um ministro pode impor, com apenas uma canetada, a sua vontade ao plenário, como aconteceu com o auxílio moradia dos juízes, que perdurou por longo tempo, por força de decisão monocrática do ministro Luiz Fux – diga-se de passagem, com altos custos para os cofres públicos – que cancelou a decisão, com a mesma canetada, sob a promessa do reajuste dos salários dos juízes, em clara negociata política. Lembremos: a mão que afaga é a mesma que barganha. O caso ainda continua em deslinde, pois, no mesmo apagar de luzes de 2018, Ricardo Lewandowski negou seguimento ao MS 36197, que buscava o cancelamento da recente resolução do CNJ que disciplina o pagamento de auxílio moradia à magistratura, sob alegação de inconstitucionalidade formal.

Estamos diante do problema dos paradoxos e das velhas incompletudes dos sistemas simbólicos e, claro, falamos sobre o que tem de democrático no direito e o que tem de direito no democrático. O Estado baila entre esses dois polos, que, tantas vezes, atravessam-se e se esmagam. O STF, que deveria proteger a Constituição, é o primeiro a afrontá-la na dança política, embora mascarado pela sua pseudopurificação. Precisamos discutir o direito e a política, ou uma sufocará a outra.  E, claro, precisamos redefinir quem ou o que descrevemos em nossos conceitos de democracia. Pois falamos de nossas heranças, e das negações e reconformações delas.

Ana Paula Lemes de Souza é pesquisadora, escritora, ensaísta, roteirista e advogada. Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Membro integrante do Grupo de Pesquisa Margens do Direito. E-mail: <[email protected]>.

Foto: Luiz Fux em lançamento de livro. Felipe Sampaio/STF

[1] Bertrand Russell deixa claro não ser de sua autoria o caso exemplificativo, embora seja ele quem o popularizou.
[2] Esse paradoxo se popularizou e seus reflexos são conhecidos até hoje, sendo utilizado por Kurt Gödel para falar sobre o seu teorema da incompletude e, igualmente, por Alan Turing, que desenvolveu estudos em ciências da computação, utilizando o mesmo paradoxo, aplicado ao problema da parada, para falar sobre o indecidível.
[3] Este problema foi trazido por Simioni, ao demonstrar a incompletude do direito, que é um sistema simbólico como outros, nos moldes de Kurt Gödel. Cf. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. O segredo de Kelsen: resenha de um livro imaginário sobre o fim do neoconstitucionalismo no direito brasileiro. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, [S.l.], v. 90, n. 1, p. 110-136, jun. 2018. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/ACADEMICA/article/view/230674/29131>. Acesso em: 17 de dezembro de 2018; Cf. GÖDEL, Kurt. On formally undecidable propositions of principia mathematica and related systems. Tradução de B. Meltzer. New York: Dover Publications, Inc., 1992.
[4] Mais sobre o tema dos povos das águas em: VALADÃO, José de Arimatéia Dias et al. (Coord.); SOUZA, Ana Paula Lemes de et al. (Org.). Clamor das águas: a busca por nova identidade para as águas minerais no Brasil. Florianópolis: CAXIF/UFSC, 2018. Disponível em: <http://www.pachamamaeditora.com/wp-content/uploads/2018/07/2018-Clamor-das-aguas.pdf>. Acesso em: 17 de dezembro de 2018.
[5] “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João, 1, 1).

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