Justiça

Os malabarismos d’‘O Globo’ em defesa da reforma trabalhista

A montanha dos benefícios da Reforma para a população pariu um rato e grandes jornais rebolam como podem.

Sinuca de bico. O desemprego em alta e o auxílio emergencial reduzido freiam o consumo e empurram as famílias para a inadimplência (Foto: Nelson Antoine/Folhapress)
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Em 17 de novembro de 2021, o blog do jornalista Fausto Macedo, ancorado no site do jornal O Estado de S. Paulo, publicou matéria contendo a avaliação de juristas acerca da reforma trabalhista quatro anos após sua aprovação. Segundo eles, a reforma não trouxe efeitos práticos e empurrou o trabalhador à informalidade, à uberização e à precarização, além de não ter cumprido com sua principal promessa, qual seja, a de gerar novos empregos.

Alguns meses depois, em 09 de fevereiro de 2022, o diário dos Mesquita resolveu bater de frente com as estatísticas, publicando editorial em que critica o PT por “atacar um dos principais avanços obtidos nos últimos anos: a reforma trabalhista aprovada em 2017”.

Azeitado com o óleo moral do udenismo, o Estadão qualifica a reforma trabalhista como “um marco jurídico sofisticado, de raro equilíbrio social e econômico”, pois regula “acertadamente as relações de trabalho” em um contexto de “inovações tecnológicas que transformam continuamente o mercado”, considerando, ainda, as “mudanças na própria população, com aumento da expectativa de vida, novo enquadramento das funções sociais do homem e da mulher na família e no ambiente de trabalho”. Segundo o Estadão, a reforma teria promovido “novos equilíbrios, sem eliminar direitos dos trabalhadores”.

E prossegue, insistindo que a reforma, “sem extinguir direitos, proporcionou mais liberdade e flexibilidade nas relações de trabalho, além de ter removido algumas excrescências do sistema jurídico nacional, como era o caso da contribuição sindical obrigatória”. Autonomia e liberdade seriam os grandes trunfos que a nova lei trabalhista trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro.

A Folha de S. Paulo também aproveitou o quarto aniversário da reforma para publicar editorial em sua defesa. Mas, diferente do Estadão, evitou pintá-la como o céu na terra, reconhecendo o fracasso em gerar empregos formais e o aumento das taxas de desocupação e informalidade. Contorceu-se, porém, para concluir que “não se pode tomar tais números como prova de ineficácia da reforma – ainda que previsões otimistas da época não tenham se confirmado”. Ao fim, o jornal dos Frias dá o braço a torcer e considera que o que resolve o problema do emprego não é o retorno ao século XIX, mas sim aquecer a economia e estimular a produtividade.

Aliás, falamos mais a fundo sobre o malabarismo da Folha nesse texto: A dificuldade da ‘Folha de S. Paulo’ em assumir o fracasso da reforma trabalhista.

Dito tudo isso, é compreensível, portanto, o misto de desforra e alívio do editorial do O Globo de 17 de junho. Após quase meia década vendo a montanha parir camundongos e tendo que lidar com números desnutridos e promessas não cumpridas, o jornal dos Marinho celebra “por que a reforma trabalhista de Temer deu certo”.

Tendo a reforma criado “pelo menos 4,8 milhões de empregos formais”, o editorial começa lembrando das acusações de escravocrata que lhe foram dirigidas pelo ex-presidente Lula, prenunciando a injustiça e o exagero de suas palavras, “termos vagos” e “chavões” que “revelariam, sobretudo, desinformação”, pois, “se forem consultadas as estatísticas, é inequívoca a constatação do êxito” resumido na “criação de empregos formais”.

Não há clichê maior que o termo “flexibilização”, insistentemente usado por seus apologistas para substituir “precarização”. Com a criação de modalidades como o trabalho intermitente, a reforma reduziu os requisitos formais de emprego. Consequentemente, o trabalho informal passou a ter pouca diferença do trabalho formal, semelhança que ficou ainda maior com a fragilização da rede de seguridade social promovida pela reforma da Previdência. Assim, o subemprego e o trabalho precarizado, antes à margem da legislação, passaram a ser previstos por ela. O jornal carioca, naturalmente, ignora essa variável, aproximando-se do Estadão e de sua visão apaixonada.

Aproxima-se, mas evita encostar. Ainda que timidamente, vê-se obrigado a fazer concessões à vida real. Se “os 10,6 milhões de desempregados sem dúvida representam um problema social grave”, “a mão de obra informal também continua inaceitável”. Aqui é necessário fazer uma abstração para defender a reforma: a maioria dos empregos celebrados pelo O Globo correspondem exatamente a essa informalidade considerada “inaceitável”. Sem se decidir se os vínculos informais são bons ou ruins, o parágrafo termina se desapegando de vez da realidade e afirmando que “sem dúvida a reforma trabalhista contribuiu para deter a alta que a pandemia provocou na informalidade”.

Claro que a litigância nas cortes trabalhistas não poderia ficar de fora. O editorial nos leva a crer que o trabalhador, mesquinho e mal-intencionado, antes da nova legislação trabalhista costumava recorrer à justiça apenas para atazanar o juízo do patrão, confiando, sempre, no “histórico pró-trabalhador da Justiça Trabalhista”.

A diminuição do acesso à justiça, um direito constitucional, é celebrada, pois agora o trabalhador brasileiro, cuja renda e poder de compra vêm corroendo em escala inédita, “é obrigado a desembolsar entre 5% e 15% dos honorários dos advogados” caso seja derrotado. A redução do número de processos é tida como um êxito da reforma. A lógica é simples: você não precisa mais recorrer ao judiciário por furtos, roubos e crimes contra o patrimônio se estes deixaram de ser crimes – o que não quer dizer, necessariamente, que esse tipo de apropriação tenha deixado de existir.

É admirável a franqueza com que o O Globo, movido por interesses de classe, se enfileira ao jornal dos Frias. “Menos processos, custo menor para as empresas e maior segurança jurídica para contratação” seriam mais provas de avanços.

Entretanto, para quem vende sua força de trabalho para sobreviver “custo menor” significa achatamento de salário. Por sua vez, “maior segurança” é algo impensável para o trabalhador que, empurrado à informalidade, não pode mais se socorrer na seguridade social caso sofra um acidente e tenha que ficar sem trabalhar. “O fim da litigância descabida”, continua o editorial, “permitiu criar 1,7 milhão de novos empregos e reduzir o desemprego em 1,7 ponto percentual”. Está certo o ex-presidente Lula ao atribuir aos pais da reforma a mentalidade de senhor de escravo, certamente os “bons empregadores” de sua época.

O editorial finaliza enumerando duas razões que impediriam o emprego de “crescer ainda mais” A primeira é a alta dos juros. A segunda, o fato da economia brasileira ser “fortemente dependente de atividades de baixa produtividade”, de modo que “nem sempre há mão de obra capacitada para ocupar os postos de trabalho mais valorizados”. Superar isso exigiria “investimento em produtividade e qualificação profissional”.

Há dez anos, o mesmo jornal publicou editorial favorável ao modelo do agronegócio, expressão maior da reprimarização e da desindustrialização em curso no país. Em outras palavras: o clã dos Marinho defende que o Brasil volte à época em que era um misto de fazendas e minas. Ao mesmo tempo, vê a necessidade de investir em “produtividade e qualificação profissional” para gerar melhores empregos.

No quadro pintado pelo O Globo, o máximo de capacitação possível seria para conduzir tratores em latifúndios de soja ou pescar ilegalmente nos rios amazônicos – isso se, para o júbilo dos editorialistas, a pesca clandestina em terras indígenas não for enfim legalizada, ocasião em que poderão comemorar a diminuição do número de processos e investigações contra delinquentes como os mandantes e assassinos de Bruno Pereira e Dom Phillips.

Em artigo publicado também sobre o editorial do O Globo, Zéu Palmeira Sobrinho, professor da UFRN e juiz do Trabalho, resume a tragédia da reforma trabalhista, apontando para os desafios que teremos que lidar nos próximos anos: enquanto representante dos interesses do capital financeiro, o jornal carioca deixou claro que “travará uma guerra contra qualquer governo democrático que, a partir das próximas eleições, ouse destruir o modelo neoliberal de gestão da força de trabalho implementado, desde o governo de Michel Temer, por meio da lei da reforma trabalhista”.

Com adversários desse calibre, é certo que, uma vez sobrevivendo às reformas neoliberais, não é de tédio que morreremos.

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