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“O pacote ‘anticrime’ é a antítese de um projeto de segurança pública”

Carol Proner vê com preocupação as propostas de Moro e aponta suas inconsistências

Foto: Universidade Pablo Olavide, Sevilla, Espanha
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Um dos destaques na resistência jurídica da ofensiva da Lava Jato, Carol Proner é presença recorrente na editoria de justiça na CartaCapital, pela capacidade de articulação de juristas e encontros internacionais para denúncia dos retrocessos experimentados pelo país no campo dos direitos individuais e sociais. Em dezembro, a jurista foi entrevista sobre o encontro com o Papa Francisco, oportunidade na qual entregou uma carta sobre a situação do Brasil. Leia mais:

Passado quase dois meses do governo Bolsonaro, o seu ministro da justiça e ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro apresentou, sem maiores justificativas, o projeto de lei que chamou de pacote “anticrime”. Diversos juristas das mais variadas matizes têm destacado no site as inconstitucionalidades e, sobretudo, os perigos desse pacote para toda a população. A ampliação das hipóteses de legítima defesa da atividade policial, por exemplo, tem deixado muitos em alerta, visto o estímulo ao conflito em um país que já ostenta níveis calamitosos de segurança pública.

Vinda da tradição do direito internacional, tema de seu magistério na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carol aponta outra questão digna de nota: a carta branca para setores acusatórios em promover acordos com assemelhados estrangeiros, muitas vezes sem a devida transparência e controle pela legislação.

Carol ainda destaca a visão geral sobre o tal pacote, bem como a execução provisória da pena, tema sensível cujo julgados do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos optou por ignorar a Constituição para promover um entendimento prejudicial a Lula, bem como a milhares de pessoas tratadas como dano colateral, como, ao final, afirma: a Lava Jato há de passar pelo escrutínio público.

CartaCapital: de um modo geral, como vê o pacote “anti-crime” de Sérgio Moro?

Carol Proner: O pacote Anticrime é a antítese de um projeto de segurança pública. Como reconheceu a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, é um projeto ultrapunitivista que não foi devidamente discutido pela sociedade.

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Qualquer reflexão consequente a respeito do tema conclui que as propostas apresentadas, além de essencialmente inconstitucionais, trarão efeitos nefastos para os já gravíssimos problemas de criminalidade, letalidade e encarceramento no Brasil.

É unanime, entre os criminalistas mais reputados, que se trata de um projeto populista e que responde às máximas emocionais da campanha de Jair Bolsonaro, “bandido bom é bandido morto”, “soldado nosso não senta no banco dos réus”, coisas nessa linha.

CC: Em entrevistas, o ex-magistrado disse que sua medida tem sido bem recebida. Já os analistas de mídias televisivas em geral tem elogiado a proposta.

CP: Sim, é verdade, em parte se deve à propaganda da violência que tem flexibilizado outros consensos sociais, como o desarmamento, por exemplo.

Mas é importante entender que, em parte, esse apoio decorre de uma preocupação legítima, especialmente por parte de gestores públicos, a respeito da necessidade de combater a criminalidade. Esse foi o caso do acordo entre o governador do Ceará e o Ministério da Justiça para o emprego da Força Nacional de Segurança. Bom, isso explica, mas não significa que a solução para os problemas da criminalidade seja mais repressão e aprisionamento diante do já colapsado sistema prisional.

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Esse recrudescimento criminal, e isso está medido e estudado, produz o oposto: a policia que mais mata é também a que mais morre;

CC: No pacote, há a previsão de autonomia plena ao MPF e Polícia Federal para firmar acordos investigativos a entidades assemelhadas estrangeiras. Quais os riscos e o significado disso na prática?

CP: Saindo do âmbito do direito penal, há dispositivos que regulam condutas que vêm sendo adotadas sem a previsão legal, como é o caso da proposta do art. 3o da Lei 12.850/2013, conhecida como Lei das Organizações Criminosas. A proposta de Moro é atribuir ampla autonomia ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal na realização de acordos internacionais com entidades congêneres para combater os crimes transnacionais e o terrorismo.

Ora, esse dispositivo, a priori, esbarra na competência orgânica do Estado para a celebração de tratados internacionais gravosos ao patrimônio nacional. Não se trata de um acordo interuniversitário, quando reitores autorizam convênios de intercâmbio acadêmico com limites orçamentários próprios, mas acordos para combater crimes complexos, de delimitação abstrata e que, pelo volume de ativos, agentes, instituições, possuem grande potencial de gerar ônus para o Estado ou, nas palavras da Constituição, “compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.

Eu escrevi sobre isso recentemente e mal consigo acreditar na redação da proposta estapafúrdia de atribuir aos procuradores federais essa ampla competência. Recordemos que o MPF atuou como mediador de acordos que custaram bilhões de reais à Petrobras, valores muito superiores ao que a empresa recuperou com a Operação Lava Jato.

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Como explicar essa vontade de conceder ao MP tamanha liberalidade?

CC: Ainda nesse assunto, por que Sergio Moro teria interesse nesse dispositivo?

CP: Francamente, quero entender isso, e mais. Quero entender a razão pela qual a Lava Jato tem sido conduzida de forma tão desastrosa do ponto de vista econômico. Veja, não estou entrando na questão política porque, então, teria que falar da seletividade e da prisão política do Lula. Falo da questão econômica.

Tenho dito, junto a outros pesquisadores que estão na mesma linha, que esses agentes públicos conduziram essa operação sem o devido cuidado com os potenciais efeitos perversos, nocivos às empresas investigadas, sejam elas públicas ou privadas.

Isso está previsto nos protocolos internacionais de combate à corrupção, funcionando como uma espécie de alerta quanto à observância intransigente das garantias legais.

Não foi o que ocorreu no Brasil e perdemos uma grande oportunidade de fazer as coisas direito

CC: Tem ainda a execução provisória da pena…

CP: A execução provisória da pena é um nó jurídico, um problema grave que ninguém que eu conheça é capaz de prever o desfecho. Para manter Lula preso, os tribunais superiores enfrentam um problema sério, precisam violar definitivamente a Constituição e os pactos internacionais de direitos humanos quanto à (inobservância da) presunção de inocência, mas isso afetará a vida de milhares de pessoas.

Recordemos que os presos em regime de execução provisória são 25% da população carcerária do país. Dos 602 mil presos, um quarto está preso por decisão de segundo grau e outros 40% cumprem ordens de prisão provisória, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em 2018. Veja só a força da prisão política de Lula, o medo de que ele possa sair, falar, dizer o que pensa a respeito do país.

CC: Acredita que um dia a Lava Jato passará pelo escrutínio público?

CP: Acredito que um dia, quando voltar a prevalecer a legalidade democrática, a Lava-Jato deverá ser objeto de escrutínio público por incontáveis motivos: pelos danos econômicos às estatais, às cadeias produtivas, aos empregos, aos nomes de políticos e partidos injustiçados em investigações seletivas, aos nomes de empresários, gerentes e funcionários públicos e privados enxovalhados e execrados antes do fim dos processos e, principalmente, por servir de exemplo punitivista que se espalha como uma praga a perseguir gestores públicos, líderes políticos e sociais, movimentos populares e todos aqueles que lutam pela democracia no país.

Por enquanto, sem a pretensão de agradar magistrados ou ministros, a nós, professores, cabe denunciar que o Projeto de Sérgio Moro agrava os problemas de segurança pública e coloca em risco os interesses nacionais.

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