3ª Turma

O Homicídio de Ágatha e o Pacote “Anticrime” de Sérgio Moro

Se tais mudanças legislativas prosperarem, teremos muito mais Ágathas e muito mais trabalhadores fuzilados por “engano”.

Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil
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O dia 20 de setembro de 2019 foi sacudido quando as redes sociais e grande parte da imprensa passaram a noticiar a morte da menina Ágatha, uma criança de apenas oito anos que tripulava uma Kombi no Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, ao lado de sua mãe e a caminho de casa. Segundo relatos, o tiro de fuzil que atingiu as suas costas teria partido de um policial que buscava neutralizar um criminoso que, supostamente, guiava uma motocicleta. As versões mais fidedignas negam qualquer confronto naquele local no momento do disparo.

O fato fez reascender as críticas à política propagada pelo governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, de que criminosos devem ser executados a qualquer custo, salvo se largarem as armas e se converterem ao cristianismo.

Isso fez com que a polícia local, no primeiro semestre de 2019, fosse a responsável por aproximadamente um terço dos homicídios naquela região. Esse é um dado extremamente alarmante, principalmente se for levado em consideração que ali nasceram e se fortaleceram as milícias, formadas por policiais, bombeiros e militares corruptos, que se utilizam da estrutura estatal para ampliar seu escopo e área de atuação, utilizando como maior expediente a execução de desafetos e membros de grupos rivais. Milícias essas com fortes laços com a família Bolsonaro e defendidas inúmeras vezes pelo próprio Presidente da República.

Nesse contexto, o “Pacote Anticrime”, de Sérgio Moro, foi alçado como uma das principais plataformas no campo da segurança pública do governo de Jair Bolsonaro. Entre medidas extremamente populistas e ineficazes, medidas razoáveis e pontos a serem debatidos, as modificações pertinentes à excludente de ilicitude da Legítima Defesa foi o ponto mais polêmico e debatido das propostas apresentadas.

A excludente de ilicitude define os casos em que a prática de ato ilegal passa a não ser mais considerada como crime, ou seja, aquilo que é capaz de lesionar ou expor a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, por exemplo, passa a não ser mais considerado como um ato criminoso.

O artigo 23, inciso II, do Código Penal, define que “não há crime quando o agente pratica o fato em legítima defesa”. Esse instrumento é aceito para repelir injusta agressão, podendo ser atual ou iminente, contra direito próprio ou alheio e, nesse contexto, se utiliza dos meios necessários, proporcionais e moderados para que de cesse a ação ilícita, o que está basicamente definido no artigo 25, nos seus cinco incisos. 

O projeto de Moro ainda tenta surfar na onda populista da eleição de Jair Bolsonaro, que foi embasada em um discurso de suposta valorização das forças policiais. Assim, tenta acrescentar o parágrafo único no mesmo artigo, considerando em legítima defesa o agente de segurança pública que, em conflito armado ou risco eminente de um, previna a agressão a direito seu ou de outrem, ou que previna agressão ou risco de agressão de vítima mantida refém durante a prática de algum crime. Ocorre que estas medidas são inócuas, porque já estão amparadas no próprio ordenamento jurídico brasileiro.

O ponto mais grave do “Pacote Anticrime” diz respeito ao chamado excesso escusável na legítima defesa, em que o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção. O grau de discricionariedade, e de margem para interpretações sobre o que significariam tais termos, faz com que seja possível imaginar que praticamente todo e qualquer excesso possa ser abarcado pelas hipóteses, mesmo sem qualquer tipo de justificativa plausível. Além disso, o ordenamento jurídico atual já prevê hipóteses em que excessos possam ser analisados sob um prisma atenuante, como em casos caso onde o indivíduo se encontre em estado de choque, por exemplo.

Na última semana, tais mudanças foram avaliadas e passaram pelo escrutínio legislativo pelo grupo de trabalho que analisa o projeto. O texto proposto por Sérgio Moro foi derrubado por nove votos a cinco pela comissão e agora seguirá para a votação em plenário, onde ainda pode ser aprovado.

É fato que o direito penal não pode conviver com termos vagos e definições abstratas, a lei deve trazer clareza e objetividade para que tenhamos segurança jurídica e para que abusos estatais sejam prevenidos, já que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, o último recurso aplicado contra os cidadãos de uma determinada sociedade.

Ágatha Felix, de 8 anos, que foi morta por um tiro de fuzil de no Complexo do Alemão. (Foto: Reprodução/Facebook)

A população brasileira, como regra, sempre aceita abusos ou propostas autoritárias em diversos âmbitos, pois imagina que tais medidas sempre afetarão os “outros”, os “marginais”, os “bandidos”. Por isso, grande parte faz coro com a famosa e infame frase “bandido bom é bandido morto”, pois assim se desumaniza o indivíduo e a partir desse ponto tudo pode ser realizado contra aquele. A excludente de ilicitude proposta por Sérgio Moro tem esse condão de agradar esse tipo de cidadão, pois sabe que são eleitores potenciais e votos são ganhos muitas vezes através da retórica demagógica. 

Porém, se fizermos o raciocínio oposto, de que podemos ser abordados pelo aparato repressivo do Estado e, nesse contexto, pode existir uma ação em que ocorram excessos contra nós mesmos, contra nossos familiares ou amigos, aceitaríamos que isso passasse impune? Aceitaríamos a alegação da excludente de ilicitude? Nos conformaríamos com o argumento de que tal ação foi realizada sob forte emoção, medo ou surpresa? A resposta será: não! 

Se tais mudanças legislativas prosperarem, teremos muito mais Ágathas, muito mais crianças feridas e mortas com gravidade nas periferias, muito mais trabalhadores fuzilados por “engano”, como foi o caso do músico Evaldo Rosa e do catador de papel Luciano Macedo. Se todos esses homicídios estatais tivessem ocorridos em bairros nobres do país, governadores teriam caído, policiais e militares teriam sido condenados e a política de segurança pública, baseada nas execuções deliberadas, já teria sido totalmente revista.

Enquanto acontece contra negros e pobres, é visto como apenas um “efeito colateral” de uma prática acertada.

Os próprios agentes da segurança pública passam a serem vítimas desse sistema articulado, pensado pela extrema direita. Na medida em que o discurso do conflito, das supostas ofertas de garantias legais para que os policiais possam ter liberdade de agir na guerra proposta pelos governantes populistas, faz com que estes fiquem cada dia mais expostos a serem vítimas de um conflito que não terá fim com as políticas aplicadas. Se é verdade que a polícia do Brasil é uma das mais letais do mundo, é igualmente verdade que o país é campeão de mortes de policiais.

Ao invés de defenderem dignidade salarial, garantias previdenciárias, reestruturação das carreiras, investimento em equipamentos e em sistemas de inteligência de ponta, os governos da extrema-direita optam por afrouxar regras de controle e legitimar abusos cometidos por maus policiais. Quem sai prejudicado com isso são os policiais honestos e, principalmente, a sociedade brasileira.

O nome Ágatha significa boa, perfeita, respeitável, virtuosa. Nunca teremos como mensurar o impacto da sua morte prematura em relação à preservação de outras vidas, mas uma coisa é certa: assim como Marielle, Ágatha reumanizou e acordou muitas pessoas que estavam hipnotizadas sob o manto do fascismo. Esperamos que outras milhares acordem a tempo de permanecerem vivas.  

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