CartaCapital

O Chile e a emancipação que deve ir além da Constituição

O processo constituinte no Chile é inegavelmente uma vitória acachapante contra Pinochet e os liberais que pongaram na ditadura chilena

Foto: PEDRO UGARTE / AFP
Apoie Siga-nos no

No diálogo final de Enola Holmes, filme que trata da irmã do famoso detetive britânico, sua mãe se dobra à vitória no parlamento inglês que ampliou o direito de voto. Tendo a filha participado dos eventos que tornaram essa vitória possível, a mãe renuncia à sua aura revolucionária e reconhece as instituições como o espaço por excelência das lutas políticas. Enola a teria ensinado que dentro da ordem tudo é possível.

O filósofo francês Alain Badiou relacionaria a conduta da mãe de Enola ao clássico fracasso das lutas emancipatórias na medida em que adere as delícias do poder parlamentar, passando da militância revolucionária para a cadeira macia do parlamento. A própria forma parlamentar, que se consolidou nos séculos XIX e XX como arena oficial dos embates políticos, não existiria nos moldes atuais se não houvesse a Revolução Francesa e o consequente enterro das formas políticas do Antigo Regime. Se a burguesia tivesse aceitado a subjugação imposta pela aristocracia e pelo clero, jamais teria se tornado classe dominante e dado início à Idade Contemporânea na qual ainda nos encontramos. Não foi por meio de votações parlamentares que esse novo mundo surgiu.

No dia 25 de outubro, o Chile decidiu colocar uma pá de cal na constituição outorgada pelo regime autoritário de Pinochet. Quase 80% dos votantes optaram por uma nova constituição, dando o primeiro passo para sepultar o entulho autoritário do general que se notabilizou como preposto dos EUA de Reagan e da Inglaterra de Thatcher na América do Sul.

Pode parecer uma tautologia, mas, se queremos uma emancipação verdadeiramente radical, o primeiro passo não pode ser o último. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels ensinam que o direito não tem autonomia. As pernas com que anda não são suas, e sim do modo de produção capitalista, que é de onde deriva. A revogação da constituição de Pinochet e a elaboração de uma nova carta constitucional correspondem, de fato, uma conquista política fundamental, mas guarda em si o risco de repetirmos o fracasso denunciado por Badiou.

Celebração da reforma da Constituição chilena em Santiago, Chile. Foto: Pedro Ugarte / AFP

O principal propósito de cartas constitucionais é administrar o capital, de modo que atual a seu reboque, e não o contrário. A criação da figura do sujeito de direito, apto a manter relações por meio de direitos e deveres, é a condição básica para tornar possível que as mercadorias circulem por meio da compra e da venda da principal delas: a força de trabalho. Isso, porém, abre janelas de contradição para lutas políticas como o sufrágio universal e a ampliação de direitos civis para segmentos sociais marginalizados. Mycroft, irmão de Enola, reclama da possibilidade de analfabetos passarem a votar, apontando para a tradição da democracia liberal em criar “cláusulas de exclusão” que blindam as decisões políticas da influência do povo. Afinal, algo deve ser feito para que conquistas emancipatórias permaneçam no cativeiro das instituições.

Ao elaborarem a constituição dos EUA, os Pais Fundadores não esconderam sua preocupação em impedir a influência do povo nas decisões parlamentares. Essa cláusula de exclusão, talvez a mais simbólica de todas, dá completo sentido ao desconforto liberal quando se depara com um horizonte que indica o reconhecimento de direitos sociais, ainda que dentro da ordem capitalista. As reclamações que eram feitas em 1988 na Assembleia Constituinte, por exemplo, são as mesmas de agora. Nossa constituição torna o país ingovernável, dizem, pois prevê direitos demais. Não há recursos para concretizá-la, apesar dos apologistas dessa tese ignorarem os mais de R$ 600 bilhões sonegados por ano no Brasil, para começar. Apenas um terço desse valor corresponde aproximadamente à média recente dos orçamentos da saúde e da educação somados.

Os resultados da luta parlamentar são reflexos da correlação de forças de seu tempo. Se o Chile dará início a um novo processo constituinte, este processo se deu na esteira de uma grande mobilização popular, assim como aconteceu com o Brasil na campanha das Diretas Já. Depositar todas as esperanças no texto constitucional, todavia, é um erro primário para quem está disposto a superar a sociabilidade capitalista. A constituição anterior à de Pinochet não impediu que, em 1973, ocorresse um golpe contra Allende e a Unidade Popular, vitoriosos nas urnas três anos antes. Tampouco a Constituição de 1946 impediu o golpe militar de 1964 no Brasil e muito menos a Constituição Plurinacional boliviana foi suficiente para segurar o golpe contra Evo Morales em 2019.

Após a convulsão social que enseja novos graus de emancipação política, a ordem democrático-parlamentar procura afunilar as demandas da sociedade revoltosa nos espremidos canais da institucionalidade. Foi isso que aconteceu no pós-1968. Também é essa a origem de certas perguntas capciosas direcionadas a manifestantes com certo pendor revolucionário, a exemplo dos que ocuparam Wall Street em 2011, bombardeados com “o que vocês querem, afinal?”.

A pergunta se traduz na tentativa de encoleirar o vigor emancipatório e empurrá-lo em molduras que não lhe correspondem. “O que vocês querem nos nossos termos, ou nas formas políticas e institucionais burguesas?”, é o seu real sentido, insensível ao fato de que manifestações do tipo não querem respostas, sendo elas próprias as respostas, como reflete Slavoj Zizek em “O ano em que sonhamos perigosamente”. Saber identificar as perguntas que estão sendo respondidas é fundamental para evitar esse encoleiramento.

“Hoje, o inimigo não se chama império ou capital. O nome dele é democracia. É a ‘ilusão democrática’, a aceitação dos mecanismos democráticos como o maior arcabouço de qualquer mudança radical das relações capitalistas”, provoca Badiou. O processo constituinte no Chile é inegavelmente uma vitória acachapante contra Pinochet e os liberais que pongaram na ditadura chilena inspirados na máxima de Friedrich Hayek, artífice do neoliberalismo que dizia preferir uma ditadura liberal ao invés de um governo democrático que não praticasse o liberalismo.

Os golpes no Brasil em 2016 e na Bolívia em 2019 são exemplos de que tal máxima permanece forte. E o que ela espera de nós é que acreditemos que a aprovação de uma nova constituição é o limite, o teto da emancipação possível, e que não há vida além da institucionalidade burguesa. Que acreditemos que é possível lhe conferir um conteúdo não-burguês, socialista, proletário, progressista e plurinacional (como se a lei tivesse vida própria e seu problema estivesse no seu conteúdo, e não em suas formas).

“Muito mais cedo do que tarde, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre para construir uma sociedade melhor”, disse Allende em seu último discurso ao povo chileno. Quero acreditar que, muito mais cedo do que tarde, deixaremos de cair na armadilha da democracia burguesa como um fim em si mesmo.

Aí sim teremos força para abrir essas alamedas.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo