3ª Turma

Narrativas de resistência: a importância da escuta das mulheres presas

A sentença criminal condenatória em si é apenas mais uma etapa da desqualificação e negação da humanidade dessas mulheres. 

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Narrativas sobre crime e criminosa/os sempre atraíram e despertaram o imaginário das pessoas. A imprensa, a ficção literária e o audiovisual sempre se dedicaram a criar discursos sobre crime, violência e criminosa/os, mas pouco sobre a estrutura do sistema de justiça criminal. O processo penal, a investigação criminal, as prisões e a/os criminosa/os  movimentam as mais diversas produções nos meios de informação e entretenimento, mas poucas pessoas sabem, por exemplo, que o Brasil ocupa a terceira população carcerária mundial masculina e a quarta feminina.

Na recente experiência do Liberta Elas na Colônia Penal Feminina Bom Pastor e na Colônia Prisional Feminina de Abreu e Lima, observamos, pelas nossas redes sociais, frequentes pedidos de pessoas que demonstraram sua vontade de entrar no sistema prisional e conhecer a rotina dessas instituições. Percebe-se, em geral, uma atração por esses ambientes fortemente ancorada em narrativas ficcionais, muitas vezes, alimentadas pelas indústrias de comunicação, informação e entretenimento. O crime e a/o criminosa/o parecem entes bastante distantes e diferenciados de nós.

Como Angela Davis explicou, a prisão sempre é feita e pensada para a/o outra/o, mas nunca para nós. Salo de Carvalho também pontua que a apropriação do crime pelo mercado e sua transformação em um produto consumível gera fenômenos de fetichização, glamourização e estetização da questão criminal, amplificando as representações de simbologias moralizadoras sobre o crime.

As narrativas criadas sobre a questão criminal, entretanto, não se restringem ao universo das produções jornalísticas e de entretenimento. Assim como essas produções, o processo penal também nos conta histórias e, embora tenham consequências e fins diferenciados, ambos criam discursos sobre a realidade a partir de visões de mundo. Os operadores do direito, ao acusarem, defenderem, denunciarem ou julgarem as rés e os réus, contam versões da realidade de acordo com seus interesses e a partir de seus espaços sociais.

Os juízes e as juízas interpretam essas narrativas, sentenciando pessoas não meramente a partir da ação criminal, mas, principalmente, baseados em quem são as pessoas julgadas. 

Se pensarmos sobre a estrutura do judiciário brasileiro, podemos verificar que a composição dos juízes é formada por um grupo bastante homogêneo. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (2018), a magistratura brasileira é formada majoritariamente por homens cis, brancos, católicos, casados e com filhos. São esses homens que julgam e interpretam as ações de jovens negra/os, moradora/es de territórios vulnerabilizados e com baixa escolaridade, perfil da população prisional brasileira. Diante desse contexto, é impossível ignorar as relações de poder que são estabelecidas entre aqueles que julgam e os que são julgados. 

Segundo o jurista Adilson José Moreira, a posição social do sujeito no processo penal é fundamental na construção da verdade processual. O jurista branco personifica o lugar de superioridade moral construído e ocupado historicamente por homens brancos. Por outro lado, ao corpo negro subalternizado e julgado é destinado o espaço da desconfiança e ausência de estima social. Ao polarizar a realidade entre o bem e o mal, o sistema de justiça reforça a imagem da população negra e pobre como criminosa em potencial e menos merecedora de direitos. 

 

O racismo estrutural fundante da sociedade brasileira é observado nas oficinas de introdução ao processo penal realizadas pelo Liberta Elas em parceria com a Defensoria Pública da União de Pernambuco e o Grupo Robeyoncé. As oficinas acontecem na Colônia Penal Feminina do Bom Pastor onde a população é formada por presas provisórias e condenadas, sendo grande a demanda por defensora/es e advogada/os para acompanhar e dar seguimento aos processos penais. 

Durante as oficinas, a defensora pública Tarcila Maia, inicialmente, esclarece as principais etapas do processo penal e, em seguida, tira dúvidas das participantes sobre seus processos. É neste momento em que a lógica punitivista da justiça criminal e as histórias de vidas das mulheres em privação de liberdade demonstram a inexistência do Estado democrático de direito. Mulheres que desconhecem os fatos pelo que estão sendo acusadas e sem acesso a informações básicas de seus processos revelam a perversidade do sistema de justiça que ao se basear em regras genéricas idealizadas para sujeitos universais que em tese compartilham das mesmas prerrogativas, ignora as diferentes formas de opressão e negação de direitos a que sempre as mulheres negras foram submetidas. Os relatos de suas experiências fora e dentro das prisões evidenciam os mais diversos processos de desumanização aos quais elas foram submetidas ao longo de suas vidas.

A sentença criminal condenatória em si é apenas mais uma etapa da desqualificação e negação da humanidade dessas mulheres. 

O sentimento de não se sentir como gente é expressado claramente nas falas das mulheres encarceradas. A sensação de ser uma zumbi e de estar morta em vida são algumas das imagens de dor compartilhadas por mulheres que têm consciência da injustiça, seletividade penal e condições desumanas a que estão submetidas. Histórias de violações de direitos, torturas, estupros e corrupção envolvendo a polícia militar no momento da prisão em flagrante são relatos de experiências comuns compartilhados durante essas oficinas. Processos marcados por se basearem apenas nos testemunhos de policiais militares, pela desconsideração de minorantes penais e do princípio da presunção de inocência são procedimentos corriqueiros observados nos processos penais das mulheres no cárcere. 

A experiência das oficinas de processo penal possibilita um raro momento de escuta de relatos e experiências de crime, justiça, violência e encarceramento a partir das narrativas das mulheres que vivenciam os efeitos da privação de liberdade. A urgência da escuta e a necessidade de narrar essas experiências a partir de si mesmas é sentida durante todas as oficinas. Por um breve momento, essas mulheres podem ser vistas além de suas penas e o que escutamos são histórias de luta e sobrevivência de pessoas que ousaram a se rebelar contra a repressão e a negação de direitos presentes em suas vidas. 

A imagem da população negra como violenta e criminosa sempre foi (re)construída pelo racismo fundante da sociedade brasileira, encontrando no sistema de justiça criminal sua operacionalização, efetivação e legitimação. O rompimento do silenciamento e da invisibilidade das mulheres em privação de liberdade é necessário como estratégia de luta contra a desumanização da população negra e a homogeneidade de discursos difundidos para legitimar o genocídio e o encarceramento dessa população. 

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