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Moria também sou eu

Na estreia da coluna Vozes da Diáspora, a socióloga Betânia Schröder traz a realidade de Moria, campo de refugiados localizado na Grécia.

(Foto de LOUISA GOULIAMAKI / AFP) Migrantes e refugiados esperam para serem registrados para darem entrada
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“As fronteiras de Munique se abriram. Um grupo de refugiados de mais ou menos 47 pessoas chega de ICE, às 17h, na estação central de Frankfurt. Quem puder ajudar, leve mantimentos”. Esta foi a mensagem que recebi em setembro de 2015, quando fotógrafa de uma revista política. Até então, não imaginava me encontrar numa das maiores crises migratórias inventadas e vividas pelo continente europeu.

Cinco anos depois: “Moria brennt!”- primeira notícia que li em 09.09.2020, enquanto desempenhava minha rotina de mãe solo, quase cega, migrante, afro-brasileira em diáspora na Europa. Gelei. Copo de café tremia. Temor por meu ser migrante exposto ainda mais à xenofobia. Onde está a Europa Prêmio Nobel da Paz?

O campo de refugiados de Moria na cidade de Mytilini, na ilha de Lesbos, na Grécia é conhecido como “O Campo da Vergonha”. Ele constitui uma das principais feridas inflamadas na política de migração da União Europeia. Construído em plena crise de 2015, é ponto de apoio para registro dos refugiados vindos de uma das principais rotas migratórias em direção ao continente europeu. Planejado para acolher 2.800 pessoas, comporta mais de 12.600 atualmente. O incêndio da última semana destruiu praticamente toda a infraestrutura do campo, desabrigando a todos os refugiados, entre eles 2.200 mulheres e 4.000 crianças (dados da ACNUR-Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados). Isto tudo em um contexto onde, em função de 35 casos de COVID-19 diagnosticados nas últimas semanas, as quase 13.000 pessoas se encontravam em quarentena obrigatória.

A notícia do incêndio gerou uma rápida mobilização na Europa. Na Alemanha, foram organizadas manifestações em 22 cidades, com mais de 30.000 pessoas nas ruas gritando: “Wir haben Platz” (“nós temos lugar”). Exigiam a total evacuação dos refugiados, mas sobretudo, confrontavam a política institucional, parlamentos e municípios com suas capacidades financeiras e logísticas para se tornarem “Sicherer Hafen” (porto seguro) para refugiados. Desde 2014 já são cerca de 23.400 mortes por afogamento no Mar Mediterrâneo. Homens, mulheres e crianças, com nomes e sobrenomes e histórias, sufocados pelo desespero e pelas águas do destino não alcançado.

Os “invasores e incendiários indesejados” permanecerão atrás das muralhas ocultas dos controles fronteiriços da União Europeia. Também nos limites invisíveis existentes em todos os lugares de policiamento institucional e moral na sociedade. A Alemanha “resolve” o problema europeu, depois de grande debate nacional, protestos dos refugiados em Moria, pressão das organizações de direitos humanos, ao oferecer asilo para 1500 famílias. Decisão condenada, especialmente nas redes sociais, mas também pela Grécia que teme uma reação em cadeia. E o destino dos mais de 10.000 confinados, literalmente ilhados, sem perspectiva de liberdade? A ACNUR local pede cinicamente calma e que se evite a polarização política do conflito.

Mas, como manter a calma?

Desde 2015, países como Turquia, Grécia, Hungria, Itália, Espanha e Alemanha são notícia internacional pelo aumento da xenofobia, violência policial e ascensão política de partidos de extrema direita. A população, por sua vez, amedrontada com a imagem construída pelas mídias de uma “invasão” na Europa, se pergunta, “o que será de nosso sistema social, com tantos refugiados vivendo às nossas custas?” O medo paira. O mesmo medo reforçado pelo oportunismo das narrativas dos partidos e movimentos de extrema direita, aumenta a xenofobia, racismo cotidiano e a negação de asilo.

Confesso que me pergunto como protejo meu corpo preto, meu sotaque brasileiro que me arremessam na mira desse medo. Sei que posso contar com a solidariedade explícita de pessoas e organizações antirracistas, mas isto não me preserva da violência racial no cotidiano. Quando fui chamada de „migrante de merda“ no trem ou ao apalparem minha vagina diante do meu filho no controle de segurança do aeroporto, não contei com qualquer gesto solidário. Sozinha estava com a memória coletiva dos abuso físicos da escravidão, dos experimentos eugênicos etc. Sozinha fiquei. Como me resguardo tendo em vista o aumento do racismo?

O Leipziger-Autoritarismus Studie indica que entre cada três alemães um é “Ausländerfeindlich” (xenofóbico), expressão até suave para mascarar o racismo e extremismo da direita arraigado no seio desta sociedade. Quero acreditar na coragem civil em situações de racismo cotidiano. Mas sobretudo, quero não deixar de crer na dignidade e humanidade das mulheres, homens e crianças confinados em Mytilini. Eles também são eu.

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