Justiça

Jacarezinho, o STF e a última palavra: Estado de exceção ou execução?

Massacre do Jacarezinho mostra que STF não tem força para conter estado de execução policial

Dor e lágrimas marcam enterro de vítimas de ação policial no Jacarezinho. Foto: Bruno KAIUCA / AFP
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Dispensarei Foucault, Agamben ou Mbembe, pois as 28 mortes do Jacarezinho parecem demonstrar que ultrapassamos o estado de exceção: ao que tudo indica, já vivenciamos o estado de execução. O primeiro, com todas as suas arbitrariedades e violações, tenta performar certa juridicidade. O estado de execução, por sua vez, não precisa de maiores justificações e refinamentos, bastando-se, com seus “autos de resistência”, de um discurso raso e vulgar de que precisa combater a “criminalidade”.

O STF, achando que tinha a última palavra, determinou uma série de regramentos para operações em comunidades. Trata-se de decisão para “favelado ver e morrer”, pois quem tem a última palavra sobre vida e morte é quem pode atirar na “cabecinha” do “bandido”. Presunção de inocência, ampla defesa, contraditório e até o “direito à prisão” são expressões que não se adequam a essa gramática do estado de execução, havendo uma espécie de presunção de “bandidagem” sobre quem habita tais territórios.

O Estado Democrático de Direito jamais concretizado entre nós é uma utopia jurídica que cada vez mais se distancia. Nos enterramos em lamaçal no qual os corpos negros, principalmente, precisam tombar no chão e experenciar o metálico frio da gaveta do rabecão, para que aqueles que, direta ou indiretamente, estão a miliciar o Estado passem por cima desse lamaçal sem sujar sequer os dedos dos pés, com lucros burocráticos e financeiros decorrentes da privatização e miliciamento do sistema de segurança.

Essas mortes demonstram que “inteligência” não é o forte do sistema de segurança pública brasileiro. Armas e drogas não são produzidas em favelas, mas, de acordo com as autoridades, precisava-se desarticular os perigosos e armados “bandidos”. Não há formas mais inteligentes de desarticular práticas criminosas e se respeitar os direitos constitucionais básicos daqueles que vivem em comunidades e que não têm relação alguma com a traficância? Aliás, há: em certo condomínio da Barra foram apreendidos 117 fuzis sem se disparar um tiro, em comparação às armas do Jacarezinho e suas 28 mortes. Inteligência, portanto, não pode ter pesos diferentes para situações similares.

Ministro Edson Fachin durante a sessão da 2ª Turma. O ministro concedeu liminar proibindo operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia em junho de 2020. (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)

O Estado Democrático de Direito foi um ideal para muitos de nós, mas custa crer que se concretize com um sistema de segurança pública em decomposição, que desconsidera novas formas de inteligência, e tomado pela accountability da produção de violência e mortes. E não coloquemos a conta apenas no passado colonial ou no próprio Estado. É um problema presente que há tempos deveria ser pautado. Quanto ao Estado, este foi tomado por grupos que estão a usar do seu oligopólio de violência para manter seus interesses econômicos e políticos. Pensar apenas no Estado como produtor dessas violências e mortes, de certo modo, é cair na arapuca conceitual e política daqueles que o capturaram.

É preciso começar a “dar nome aos bois”, ou seja, juridicamente, pensar em soluções que apontem responsabilidades dos sujeitos que produzem essas violências e mortes acobertadas pela institucionalidade do CNPJ estatal. A teoria jurídica a respeito da responsabilidade civil do Estado, até aqui, é bastante tradicional e beneficia quem têm o domínio do fato no estado de execução: há parlamentares, governadores, autoridades policiais e jurídicas que têm CEP e CPF, mas simplesmente lavam suas mãos de sangue dos corpos “problemáticos” e racializados.

Nada tem parado essa máquina de fuzilar gente: sequer o STF consegue contê-la. Um monstro já está formado e se irradiará para além das favelas e subúrbios fluminenses. Assim como as facções criminosas migraram para outros Estados, o miliciamento está a fazer o mesmo. O discurso de combate às drogas e “bandidagem” não em vão rende dividendos políticos jamais vistos na história eleitoral brasileira, inclusive bastante sedutor entre aqueles que são vítimas desse processo necrojurídico que promove a naturalização de desprezo à vida.

Infelizmente, Jacarezinho não será o último caso, mas a promoção do seu horror pode ser uma dolorosa oportunidade para pensar novas formas jurídicas de parar esse abatedouro de parcela da juventude negra, que não é vista sequer como mão-de-obra a ser explorada pelo capital, restando-lhes como pouca opção a acolhida pelo tráfico. Se as pessoas mortas eram ou não “bandidas” não cabe aos agentes do Estado promover carnificina, pois não lhes é dado direito de agir como “juiz” que decide a respeito da vida e morte de quem quer que seja. Não se pode tolerar que a lógica de barbárie prevaleça mais uma vez. As explicações dadas até o momento são pouco convincentes a respeito do cumprimento de quaisquer protocolos nas comunidades.

Uma “inteligência” que produz mortes não condiz com qualquer performance de Estado de Direito, sequer de exceção, é o mais puro estado de execução da barbárie de classe e raça.

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