Justiça

Feliz “Kompetenz-Kompetenz” para o STF!

Algumas fórmulas científicas são capazes de explicar o malabarismo de ocasião

Apoie Siga-nos no

Essa história começa em abril de 2018. O Ministro Luiz Fux, por ocasião da rejeição do habeas corpus preventivo do ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou, categoricamente, que o “respeito à sua própria jurisprudência é dever do Judiciário”.[1] Trazemos o contexto dessa assertiva, que foi emitida por Fux para permitir a prisão antes do trânsito em julgado, mesmo que isso significasse ir contra a Constituição Federal de 1988 que, salvo eventual mudança pelos processos legislativos e respeitada a separação dos poderes, no artigo 5°, inciso LVII, afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Voltemos mais um pouco no tempo, em março de 2017, quando Flávio Bolsonaro, ao lado do hoje presidente e seu pai, Jair Messias Bolsonaro, acenou positivamente a cabeça quando este afirmou que o foro privilegiado era uma “porcaria“.[2]

Agora façamos a fusão de ambos os marcos temporais, de modo a tomá-los como diacronia para pensarmos no que aconteceu logo em janeiro de 2019, no primeiro mês de governo de Bolsonaro, que sopra os novos tempos que assombram nos horizontes. O ministro Fux e o senador Flávio Bolsonaro se juntaram para inovar, cada um a seu modo, quando as posições são outras no jogo: Luiz Fux, ministro plantonista, vai contra a jurisprudência do STF, criando a figura de “foro privilegiado preventivo”, ao acatar o pedido do filho do presidente e senador eleito Flávio Bolsonaro, para que suspendesse a apuração de movimentação financeira do seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, feita através de medida cautelar, na reclamação 32.989/RJ. Contudo, a jurisprudência do STF é clara, fixada pelo Tribunal Pleno em maio de 2018, em questão de ordem suscitada na AP 937: só se fala em foro privilegiado se o crime for praticado durante e em razão do exercício do cargo, desde que ainda se esteja no exercício do mesmo, o que não se aplica, obviamente, ao filho de Bolsonaro, que nunca sequer exerceu mandato no Congresso Nacional.

Mas claro que Fux, o grande “respeitador” da jurisprudência, bruxo-mor do STF, criou nova magia para desrespeitá-la, aquela que, há cerca de um ano, estava acima da Constituição: o novíssimo princípio da Kompetenz-Kompetenz. Trata-se de mais um nome para o dicionário mágico do STF, o que nos lembra a voz atemporal do Humpty-Dumpty explicando para Alice no País das Maravilhas o que é o “desaniversário”: aquilo que significa exatamente o que se quer que signifique, desde que você esteja no poder.

O príncipe da vez, Flávio Bolsonaro, utiliza-se desse mesmo poder, em peça processual de duvidosa legitimidade ativa, para se fazer valer do foro privilegiado, que deixa de ser “uma boa porcaria” e se torna a “porcaria boa”, para abranger época anterior à sua posse, hipótese em que jamais se poderia falar em foro privilegiado.

Flavio Bolsonaro ao lado de pai Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução Facebook.

A anedota soa irônica: Luiz Fux vota contra a Constituição, porque o respeito à jurisprudência é a primeira regra, e agora vota contra a jurisprudência porque, sabe-se lá o que se torna a primeira regra. Talvez os interesses momentâneos políticos partidários, que têm como nome provisório Kompetenz-Kompetenz. Contudo – lembremos – os nomes podem mudar. Traduzido em matemática, a conta é a seguinte:

Interesses políticos-partidários (codinome do momento: Kompetenz-Kompetenz) > (maior que) jurisprudência > (maior que) Constituição Federal

O observador, nesse caso, lembra-se, é o próprio STF, guardião da Constituição, que usa como elemento maior os interesses políticos partidários, (donde se conclui) que a Constituição é, pela visão de Fux, ∅ ou { } (conjunto vazio).

 

 Constituição Federal (para Fux) = (é igual) ∅ ou { } (conjunto vazio)

 

 No caso de Flávio Bolsonaro, o foro privilegiado é uma porcaria, desde que essa porcaria seja aplicada aos outros e não a ele próprio e seus comparsas. Nessa última situação, o foro privilegiado se torna algo tão bom e desejado que se pede a sua aplicação ex tunc, extensiva e antecipada, para abranger o período em que sequer existia cargo político. Traduzido em termos matemáticos:

Foro privilegiado = (é igual) uma porcaria (se e somente se) ele for aplicado aos outros. Se for aplicado ao Flávio Bolsonaro, o foro privilegiado é bom (para todo e qualquer), qualquer que seja o caso

Trocando em miúdos, deixamos a ironia para ser explicada pelo próprio Flávio:

— Eu sou contra o foro, mas não é uma escolha minha. O foro é por prerrogativa de função. Então, querendo ou não querendo, eu tenho que entrar com o remédio legal no órgão competente. O STF é o único órgão que pode falar qual é o foro”.[3]

Ou seja, segundo Flávio:

Remédio legal implausível é > (maior que) sua vontade > (maior que) sua escolha

Donde concluímos que o remédio legal implausível no STF é autoimpetrável, entidade inanimada repleta de vontade e necessidade, só – e somente só – se ferir a vontade da família presidencial, o que o coloca em nítida vantagem em relação à Constituição Federal, que, para falar matematicamente com Fux, é um conjunto vazio. Ainda mais nesses novos tempos em que, se ninguém investigar, a corrupção será dada como inexistente. É o que parece anunciar as medidas recentes do governo, com a dificultação de acesso aos dados da lei da transparência, através do decreto 9690 de 23/01/2019, assinado por Hamilton Mourão. Será mesmo verdadeira a assertiva de que, tal e qual durante a ditadura militar, se os olhos não veem, os corações não sentem?

Mas voltemos ao tempo presente, já vislumbrando outros futuros: qual o próximo nome a compor o dicionário dos desaniversários do Supremo? A criatividade é infinita, mas o meu desespero também.

Ana Paula Lemes de Souza é pesquisadora, escritora, ensaísta e advogada. Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Membro integrante do grupo de pesquisa Margens do Direito. E-mail: [email protected].

Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil
[1] Conforme veiculado no portal Istoé, em 04-04-2018. Disponível em: <https://istoe.com.br/fux-vota-pela-rejeicao-de-habeas-corpus-a-lula/>. Acesso em: 23 jan. 2019.
[2] Conforme veiculado no portal G1, em 17-01-2019. Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/t/todos-os-videos/v/em-video-de-2017-bolsonaro-criticava-o-foro-privilegiado-ao-lado-do-filho-flavio/7308172/>. Acesso em: 23 jan. 2019.
[3] Conforme veiculado no portal Congresso em Foco, em 19-01-2019. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/corrupcao/flavio-bolsonaro-diz-ser-contra-foro-privilegiado-mas-nao-e-escolha-minha/>.

Essa história começa em abril de 2018. O Ministro Luiz Fux, por ocasião da rejeição do habeas corpus preventivo do ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou, categoricamente, que o “respeito à sua própria jurisprudência é dever do Judiciário”.[1] Trazemos o contexto dessa assertiva, que foi emitida por Fux para permitir a prisão antes do trânsito em julgado, mesmo que isso significasse ir contra a Constituição Federal de 1988 que, salvo eventual mudança pelos processos legislativos e respeitada a separação dos poderes, no artigo 5°, inciso LVII, afirma que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Voltemos mais um pouco no tempo, em março de 2017, quando Flávio Bolsonaro, ao lado do hoje presidente e seu pai, Jair Messias Bolsonaro, acenou positivamente a cabeça quando este afirmou que o foro privilegiado era uma “porcaria“.[2]

Agora façamos a fusão de ambos os marcos temporais, de modo a tomá-los como diacronia para pensarmos no que aconteceu logo em janeiro de 2019, no primeiro mês de governo de Bolsonaro, que sopra os novos tempos que assombram nos horizontes. O ministro Fux e o senador Flávio Bolsonaro se juntaram para inovar, cada um a seu modo, quando as posições são outras no jogo: Luiz Fux, ministro plantonista, vai contra a jurisprudência do STF, criando a figura de “foro privilegiado preventivo”, ao acatar o pedido do filho do presidente e senador eleito Flávio Bolsonaro, para que suspendesse a apuração de movimentação financeira do seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, feita através de medida cautelar, na reclamação 32.989/RJ. Contudo, a jurisprudência do STF é clara, fixada pelo Tribunal Pleno em maio de 2018, em questão de ordem suscitada na AP 937: só se fala em foro privilegiado se o crime for praticado durante e em razão do exercício do cargo, desde que ainda se esteja no exercício do mesmo, o que não se aplica, obviamente, ao filho de Bolsonaro, que nunca sequer exerceu mandato no Congresso Nacional.

Mas claro que Fux, o grande “respeitador” da jurisprudência, bruxo-mor do STF, criou nova magia para desrespeitá-la, aquela que, há cerca de um ano, estava acima da Constituição: o novíssimo princípio da Kompetenz-Kompetenz. Trata-se de mais um nome para o dicionário mágico do STF, o que nos lembra a voz atemporal do Humpty-Dumpty explicando para Alice no País das Maravilhas o que é o “desaniversário”: aquilo que significa exatamente o que se quer que signifique, desde que você esteja no poder.

O príncipe da vez, Flávio Bolsonaro, utiliza-se desse mesmo poder, em peça processual de duvidosa legitimidade ativa, para se fazer valer do foro privilegiado, que deixa de ser “uma boa porcaria” e se torna a “porcaria boa”, para abranger época anterior à sua posse, hipótese em que jamais se poderia falar em foro privilegiado.

Flavio Bolsonaro ao lado de pai Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução Facebook.

A anedota soa irônica: Luiz Fux vota contra a Constituição, porque o respeito à jurisprudência é a primeira regra, e agora vota contra a jurisprudência porque, sabe-se lá o que se torna a primeira regra. Talvez os interesses momentâneos políticos partidários, que têm como nome provisório Kompetenz-Kompetenz. Contudo – lembremos – os nomes podem mudar. Traduzido em matemática, a conta é a seguinte:

Interesses políticos-partidários (codinome do momento: Kompetenz-Kompetenz) > (maior que) jurisprudência > (maior que) Constituição Federal

O observador, nesse caso, lembra-se, é o próprio STF, guardião da Constituição, que usa como elemento maior os interesses políticos partidários, (donde se conclui) que a Constituição é, pela visão de Fux, ∅ ou { } (conjunto vazio).

 

 Constituição Federal (para Fux) = (é igual) ∅ ou { } (conjunto vazio)

 

 No caso de Flávio Bolsonaro, o foro privilegiado é uma porcaria, desde que essa porcaria seja aplicada aos outros e não a ele próprio e seus comparsas. Nessa última situação, o foro privilegiado se torna algo tão bom e desejado que se pede a sua aplicação ex tunc, extensiva e antecipada, para abranger o período em que sequer existia cargo político. Traduzido em termos matemáticos:

Foro privilegiado = (é igual) uma porcaria (se e somente se) ele for aplicado aos outros. Se for aplicado ao Flávio Bolsonaro, o foro privilegiado é bom (para todo e qualquer), qualquer que seja o caso

Trocando em miúdos, deixamos a ironia para ser explicada pelo próprio Flávio:

— Eu sou contra o foro, mas não é uma escolha minha. O foro é por prerrogativa de função. Então, querendo ou não querendo, eu tenho que entrar com o remédio legal no órgão competente. O STF é o único órgão que pode falar qual é o foro”.[3]

Ou seja, segundo Flávio:

Remédio legal implausível é > (maior que) sua vontade > (maior que) sua escolha

Donde concluímos que o remédio legal implausível no STF é autoimpetrável, entidade inanimada repleta de vontade e necessidade, só – e somente só – se ferir a vontade da família presidencial, o que o coloca em nítida vantagem em relação à Constituição Federal, que, para falar matematicamente com Fux, é um conjunto vazio. Ainda mais nesses novos tempos em que, se ninguém investigar, a corrupção será dada como inexistente. É o que parece anunciar as medidas recentes do governo, com a dificultação de acesso aos dados da lei da transparência, através do decreto 9690 de 23/01/2019, assinado por Hamilton Mourão. Será mesmo verdadeira a assertiva de que, tal e qual durante a ditadura militar, se os olhos não veem, os corações não sentem?

Mas voltemos ao tempo presente, já vislumbrando outros futuros: qual o próximo nome a compor o dicionário dos desaniversários do Supremo? A criatividade é infinita, mas o meu desespero também.

Ana Paula Lemes de Souza é pesquisadora, escritora, ensaísta e advogada. Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Membro integrante do grupo de pesquisa Margens do Direito. E-mail: [email protected].

Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil
[1] Conforme veiculado no portal Istoé, em 04-04-2018. Disponível em: <https://istoe.com.br/fux-vota-pela-rejeicao-de-habeas-corpus-a-lula/>. Acesso em: 23 jan. 2019.
[2] Conforme veiculado no portal G1, em 17-01-2019. Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/t/todos-os-videos/v/em-video-de-2017-bolsonaro-criticava-o-foro-privilegiado-ao-lado-do-filho-flavio/7308172/>. Acesso em: 23 jan. 2019.
[3] Conforme veiculado no portal Congresso em Foco, em 19-01-2019. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/corrupcao/flavio-bolsonaro-diz-ser-contra-foro-privilegiado-mas-nao-e-escolha-minha/>.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo