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Existem rostos negros escondidos atrás de projetos de sucesso?

Invizibilizar, sabotar e atacar projetos e ações protagonizadas por mulheres negras são táticas previsíveis e reproduzidas.

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
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Nem tudo que reluz é ouro. Muitas vezes as mãos que arquitetaram uma obra encantadora, foram intencionalmente escondidas atrás de uma história ou excluídas por quem se apodera da narrativa.

A cinematografia nos revela biografias de mulheres cuja genialidade foi ocultada. A exemplo do filme Hidden Figures, traduzido de forma que considero desleal: Estrelas Além do Tempo. Baseado no livro de Margot Lee Shetterly, escritora negra, conta a história de três matemáticas e engenheiras espaciais da NASA . Katherine Johnson, Dorothy Vaughn e Mary Jackson, negras geniais que foram escondidas.

Trago também a professora Petronilha Beatriz Goncalves e Silva (foto), que marcou a história da educação brasileira e foi a relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana.

Quando se referem as políticas de ação afirmativa e a Lei 10.639/03, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, percebo que raramente seu nome é citado, a exemplo da Lei conhecida pelo nome de Afonso Arinos, um homem branco. Se referir ao documento como Parecer Petronilha é digno e incomum.

Menciono essas duas referências para refletirmos sobre a provocação no título desse artigo e iniciar mais um relato sobre minha carreira, pois inúmeras vezes também me deparei com tentativas para invizibilizar meu rosto negro, quando projetos criados por mim, se destacaram.

Quando iniciei na Coordenação, foi necessário redimensionar o projeto de formação para professores, pois uma nova legislação assim exigia. Éramos duas no cargo. A outra era uma mulher não negra, que atuava naquela escola há tempos e externou dificuldades em decorrência das mudanças exigidas. Assumi então, grande parte da elaboração. Lembro dela digitando o que eu dizia, demonstrando desconhecimento das referências citadas. Concluído o trabalho, era necessário submetê-lo a instancias superiores para aprovação.

Certo dia percebi que minha parceira ficou ausente por um longo período. Quando retornou, me surpreendi quando a vi contando para os professores que participou de uma reunião e apresentou o projeto para todas as coordenadoras das demais escolas. Que recebera muitos elogios e nosso projeto seria referência.

Relatou orgulhosa e cinicamente que recebera um convite para integrar a seleta equipe pedagógica em forma de reconhecimento. Se era uma reunião para todas as coordenadoras, por que não fui informada por ela ou pela direção?

Percebi que minha presença foi ocultada do protagonismo, pois a trajetória de mulheres que vieram antes de mim, me ensinou essa realidade. Mudam as estratégias, mas os objetivos discriminadores, não. Invizibilizar, sabotar e atacar projetos e ações protagonizadas por mulheres negras são táticas previsíveis e reproduzidas por algumas mulheres brancas, quando se relacionam com negras. É preciso prever situações como essas que se repetem e romper o ciclo, anunciar e proteger nossa autoria.

Muitas vezes nos espaços de liderança, sentimos receio de anunciar que a ideia foi parida por nosso ventre negro. Tentativas de apagamento ocorrerão em diversas situações. Possivelmente, quando a oportunidade e o reconhecimento institucional chegar, as pessoas que ocultaram a autoria não se constrangerão ao receber prestigio pelo que não elaboraram.

Aprendi que é preciso encontrar caminhos para que a autoria do que fazemos seja publicizada, se for para nós importante. Iluminar nossas ações e jogar nós mesmas a luz. Buscar caminhos para descortinar e evidenciar nossa competência será constantemente necessário. É preciso pensar como um capoeirista que executa os movimentos e sabe o momento certo de deferir cirurgicamente golpes certeiros para não levar rasteira.

No dia seguinte, visitei o local onde trabalhava a equipe pedagógica que organizava as reuniões e me apresentei como nova no cargo. Anunciei cordialmente que eu era também responsável pela elaboração do projeto e queria retribuir o reconhecimento pela valorização do meu trabalho com deliciosos chocolates. Ofereci meus endereços para comunicação, doces e me despedi.

Como diz o samba de Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e Beto Sem Braço, imortalizado na voz de Beth Carvalho:

“Camarão que dorme a onda leva

Hoje é o dia da caça, amanhã do caçador”.

Tanto faz se o sobrenome é Silva, como o meu e de Petronilha, ou qualquer outro em inglês, francês ou javanês. O nome feminino de quem é a autora de um projeto de excelência – seja o parecer e as diretrizes curriculares, os cálculos na corrida espacial, ou até mesmo um projeto educacional – será invisibilizado, ocultado e muitas vezes atacado, sobretudo se a criação for de uma mente que habita um corpo negro. Semanas depois, contou ela que declinou do convite. Mas, o importante é que Exú não dorme e eu também não!

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