3ª Turma

Do mito da presunção de inocência à prática incriminadora do Estado

A narrativa que transforma uma mera usuária de maconha em uma delinquente habitual toca como um disco arranhado nos tribunais de Pernambuco

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“Eu peguei mais tempo do que o cara que estava guardando a droga em casa? Seis anos e dez meses? Pô, tenho dezenove anos, sou jovem, nunca fui presa e aquele juiz me deu isso tudo? Eu sabia! Ele ficou no celular enquanto eu respondia as perguntas de vocês”. Foi com indignação que a ativista do movimento de grafitagem Pão & Tinta, estudante e faxineira, Mayara Antônia, moradora do bairro do Ibura, periferia localizada na zona sul do Recife, recebeu a notícia de sua sentença. Moradora de uma área em que a única política pública eficaz é o braço armado do Estado, a jovem costumava comprar entre 25 a 50 gramas da substância para uso próprio, exatamente pelo receio de esbarrar com a polícia em um território marcado pela “guerra às drogas”.

O caso de Mayara impressiona, justamente, por sua não excepcionalidade no sistema de justiça criminal brasileiro e em como o discurso jurídico punitivista é construído ao longo do processo penal pelos principais operadores do direito – policiais militares, delegados, promotores de justiça e juízes – para reproduzir a dominação social.

Ao observar a população carcerária brasileira, nota-se que seu público-alvo é a população jovem, negra, historicamente excluída dos espaços formais de trabalho, sem antecedentes criminais, provedora do lar e residente em territórios marcados pela ausência de políticas públicas. O sistema prisional existe como uma poderosa arma de manutenção social e extermínio, sendo utilizada de forma extremamente violenta durante toda a história do Brasil. A prisão é o destino em que determinados corpos sociais de territórios específicos são depositados a fim de se manter uma falsa sensação de paz social desejada pela população branca e de classes sociais elevadas.

Grande parte das mulheres encarceradas em Pernambuco e no Brasil é, assim como Mayara, julgada e presa por portar pequenas quantidades de substância ilícita e por estar, supostamente, envolvida em redes de tráfico de drogas, formando uma grande associação criminosa.

Na realidade, essas mulheres possuem pouca ou nenhuma importância no mercado clandestino e são suspeitas e julgadas culpadas por conta de sua raça, classe e dos territórios onde vivem. Se tivessem um status social diverso, poderiam facilmente ser consideradas usuárias.

Como a socióloga Razack¹ explica, não é possível compreender o funcionamento dos sistemas de justiça criminal sem considerar as dinâmicas sinergéticas de opressão existentes entre raça, espaço e lei. Não é por coincidência que a reportagem “O que está acontecendo no Ibura?”, do Marco Zero Conteúdo, indica que no mesmo período em que Mayara foi presa ocorreram no local várias ações policiais violentas, o assassinato de quatro jovens negros e relatos de diversos moradores sobre as constantes investidas violentas da polícia em nome da “guerra às drogas”.

No caso de Mayara, as ilegalidades se iniciam já no ato da prisão: Mayara foi constrangida pelos policiais a informar um lugar onde seria possível comprar mais maconha e é justamente por apontar o local e, nele ser encontrado quase três quilos de maconha, quantidade que parece apavorar o promotor e o juiz do processo, que seu crime é entendido como tráfico.

Sem provas contundentes e apesar da acusada afirmar, em todos os momentos, que é usuária e não tinha relação com J.F., responsável pela quantidade achada no local indicado, a jovem tem seu crime vinculado à quantidade total de maconha encontrada e à participação frequente na comercialização de drogas. Torna-se, assim, cúmplice do outro réu do processo, uma agente do vício e do tráfico, colocando em risco a saúde pública e a sociedade, segundo o juiz de plantão que realizou a audiência de custódia. Quase naturalmente, a prisão em flagrante é convertida em preventiva, contrariando o artigo 312 do Código de Processo Penal, visto que a acusada tem residência fixa, é primária, estudante, ativista e trabalha.

Na verdade, é logo no inquérito policial, peça inicial de acusação, que a suspeita é condenada. Apesar das inúmeras tentativas da defesa de fazer valer a presunção de inocência e demonstrar que o fato de Mayara ser usuária de maconha não a transforma em uma pessoa sem credibilidade, a abordagem policial narrada pelos agentes do Estado, únicas testemunhas de acusação em todo o processo, vale como prova incontestável.

Essa narrativa repete-se sem nenhum questionamento como um mantra punitivista tanto no pedido de denúncia feito pelo Ministério Público de Pernambuco como na sentença elaborada pelo juiz que sem qualquer constrangimento e com ares de legalidade e imparcialidade define o futuro da jovem. E assim, durante todo o processo penal, tudo que é dito por Mayara, pela sua advogada e testemunhas de defesa é ignorado pelos operadores da lei.

Não é à toa que esses homens brancos que pertencem às classes elevadas e representam o padrão heteronormativo não apresentam nenhum constrangimento em punir de forma severa mulheres jovens como Mayara por meio de uma retórica misógina, racista e classista.

Ao longo de todo o processo, as provas contra Mayara baseiam-se nos depoimentos contraditórios de dois policiais militares e nas visões de mundo desses homens que julgam com enorme rigor pessoas não pertencentes a seus espaços sociais e tendem a “esquecer”, por exemplo, 39 quilos de cocaína no avião da Força Aérea Brasileira. Apesar de as duas testemunhas/policiais de acusação afirmarem que Mayara foi presa por portar um papelote de maconha, eles se contradizem, por exemplo, quando questionados se havia ou não uma investigação prévia sobre a acusada, sendo este fato ignorado pelo promotor e juiz de direito.

Todavia, é na audiência de instrução e julgamento, que aquilo dito por Mayara, sua advogada e testemunhas de defesa parecem realmente não fazer diferença. Logo de início, o magistrado profere sua visão de mundo e justiça, tornando irrelevante os atos de fato praticados por Mayara e sim a narrativa criada em torno da sua personalidade. A performance do juiz e a do promotor chocam os espectadores mais ingênuos e confiantes na imparcialidade do processo penal.

Cenas como o juiz falando ao telefone e do promotor se retirando da sala durante as falas das testemunhas de defesa marcam o desenrolar da audiência, ocorrida seis meses depois da prisão de Mayara.

O caso de Mayara soma-se ao alto número de mulheres que aguardam seu julgamento na prisão sem condenação. Em Pernambuco, a presunção de inocência assegurada pela Constituição Federal é uma mera ficção e cerca de 56% da população carcerária feminina está no cárcere preventivamente.

A mesma narrativa utilizada no caso de Mayara que transforma uma mera usuária de maconha em uma delinquente habitual que representa risco à segurança pública toca como um disco arranhado nos tribunais de justiça de Pernambuco. Além disso, sob a justificativa de que servidores públicos não têm motivação para prejudicar qualquer cidadão, a fé pública é utilizada erroneamente por analogia pelos juízes que presidem o processo penal. Baseada em um conceito do direito administrativo e, portanto, sem status constitucional, esse recurso viola o princípio da presunção de inocência, previsto na CF/88.

 

Se contextualizarmos esse pressuposto com a atual política de segurança pública adotada no estado de Pernambuco, o Pacto pela Vida, que bonifica a atuação da polícia e a apreensão de drogas, a imparcialidade dos agentes de segurança pública tornasse ainda mais contestável.

Ao nos debruçarmos sobre o processo de Mayara, percebe-se a prática de um direito penal alicerçado nas características do autor, em que as narrativas trazidas pelos policiais militares são ratificadas e tidas como verdades absolutas tanto pelo promotor quanto pelo juiz. A performance do promotor do Ministério Público e do magistrado confundem-se, criando uma simbiose que tem sua origem na abordagem policial e no inquérito. A narrativa (re)criada e materializada pelos operadores do direito penal reflete como a estrutura do sistema de justiça criminal nutre e se alimenta da ações de seus agentes.

¹ Para saber mais sobre Sherene H. Razack, ver o livro Race, Space and the Law. 2002.

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