3ª Turma

Direito Penal: instrumento de criminalização dos corpos femininos

O direito penal patriarcal consiste em um consenso social de controle que visa à manutenção da ordem estrutural da dominação masculina.

Foto: Carol Garcia
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No Brasil, as construções históricas das identidades femininas e as desigualdades de gênero estão ligadas diretamente à política proibicionista do Estado. Desta forma, pensar o direito sob a perspectiva de uma sujeita feminina é entendê-lo também como uma ferramenta patriarcal e racista para o controle e a criminalização dos corpos femininos. Salienta-se que a ideia não é reafirmar um estereótipo de que as mulheres não cometem atos ilícitos, vitimizando-as ou negando-as suas condições de protagonistas de suas vidas. Mas, tenciona-se aqui, as contradições que as mulheres vivenciam numa sociedade patriarcal, racista e capitalista. 

Não podemos dispensar a análise crítica sobre a articulação entre o patriarcado, o racismo, o direito e o controle social por meio da atuação das instituições sociais como o sistema de justiça criminal. Neste caso, o movimento feminista contribuiu, teórica e politicamente, para revelar a estrutura patriarcal racista de funcionamento do Estado. Nesse sentido, Pateman (1993) analisa o casamento como um contrato sexual onde se observa a sujeição social e sexual das mulheres. Desta forma, o entendimento é que, no contrato social, as mulheres não são incorporadas como indivíduos, mas como subordinadas naturais.

O patriarcado, portanto, é uma construção histórica e social de dominação sobre os corpos femininos.

Desse modo, é, a partir da noção de patriarcado, que a teoria social feminista fala sobre as mulheres, descrevendo-as como um grupo sociopolítico fundamentado em vivências comuns. Como apontava Beauvoir (1967), não se trata aqui de enunciar verdades eternas e essencialismos, mas de descrever a estrutura comum que mesmo possuindo níveis diversos de opressões, perpassa toda a existência feminina singular. Essa noção de mulheres como categoria possibilita, tanto para o movimento social quanto para a teoria feminista, um direcionamento político que enfatiza o protagonismo da reflexão sobre as mulheres e de suas próprias práxis por elas mesmas, construindo-se a dialética da história das mulheres

Assim, a teoria social feminista vem, ao longo da história, contribuindo para a ciência com a desconstrução dos seus pressupostos binários e antagônicos que estabelecem como padrão o naturalismo, a neutralidade, o universalismo e o androcentrismo. São esses pontos fundamentais defendidos e usados constantemente pelo direito penal na criminalização das mulheres. O direito penal patriarcal consiste, portanto, em um consenso social de controle que visa à manutenção da ordem estrutural da dominação masculina, branca, heterossexual e cisgênera. Esta dominação não é episódica e parte da própria natureza jurídica que perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Os corpos femininos vêm sendo compreendidos historicamente de forma invisibilizada e subordinada. O direito penal não se propõe a pensar suas condições socioculturais para além da normatização e do controle comportamental, moral, sexual, racial e reprodutivo. Nesse sentido, Zaffaroni (1993) analisa a construção do direito penal como um dos principais marcos do controle feminino no espaço público. 

Essa construção de inferioridade do feminino também se observa na origem etimológica da palavra “feminina” que indicava fe e minus, ou seja, menor fé. Observa-se o conteúdo simbólico e moral  da palavra que demonstra a fraqueza do feminino, sendo mais suscetível aos valores e às tentações do mal.

É necessário, portanto, segundo esta lógica, maior controle sobre os corpos femininos bem como uma maior punição sobre suas práticas de resistência, subversão e ilicitudes, visando a sua  correção e adequação ao sistema capitalista. 

Esse processo de perseguição, eliminação e caracterização do feminino como fraco, incompleto e falho, é utilizado como justificativa para uma maior tutela e controle dos corpos femininos pelos homens e pelas instituições sociais como a Igreja e o sistema de justiça criminal. Neste caso, o controle extrapenal e penal se desenvolvem de forma relacional e por meio do uso de violência, gerando também invisibilidade e estigma em relação à mulher criminosa. No processo de criminalização das mulheres, também é demonstrado repúdio na ocupação dos corpos femininos em espaços públicos, sendo a embriaguez, desordem, vadiagem, uso de drogas, prostituição, aborto e a participação em relações homoafetivas usados como elementos para criminalizar ainda mais esses corpos. Essas são formas de controle usados pelo direito penal para punir e cercear nossas subjetividades, estabelecendo um padrão que serve ao capital. Todos esses atos violam, portanto, o “dever ser” feminino, ferindo padrões hegemônicos de gênero.    

Nesse sentido, a maioria das prisões femininas foi instalada em conventos, como a Colônia Penal Feminina do Bom Pastor em Recife, Pernambuco, com finalidade de reconduzir as mulheres aos papeis de gênero estabelecidos pela sociedade. Observa-se ainda o caráter reabilitador e  tutelar sobre os corpos femininos, resultando, portanto,  em várias camadas de criminalização pela sociedade e pelo Estado. A criminalização é sentida no tratamento violento demonstrado pela sociedade, na rejeição e no abandono familiar, no aumento do uso de questões referentes à moralidade pelas operadoras e pelos operadores do sistema de justiça criminal e  na maior dificuldade de reinserção socioeconômica que as mulheres que se encontram no cárcere enfrentam. Dessa forma, os controles sociais se retroalimentam, visando ao reconhecimento e a perpetuação da subordinação dos corpos femininos, punindo-os e controlando-os de forma rígida e violenta os que desviam minimamente dos comportamentos  aceitáveis para uma conduta de mulher cis, branca e heterossexual. 

Assim, o direito penal sempre foi utilizado como instrumento do patriarcado para o controle dos corpos femininos e para a manutenção das desigualdades sociais. No Brasil, onde as primeiras mulheres encarceradas foram as mulheres indígenas e as mulheres negras, a prisão sempre foi usada como uma política de opressão e manutenção de poder.  A criminalização de corpos femininos é uma ferramenta legal utilizada até hoje assim como o uso de aspectos morais nos processos penais. Essas ferramentas demonstram a misoginia, o racismo, a perversidade e a hipocrisia do sistema de justiça criminal que age em função do sistema capitalista. A lógica proibicionista, punitivista do Estado brasileiro age em conjunto com o racismo, o patriarcado e capitalismo, retroalimentando-se e (re)construindo, portanto, as desigualdades brasileira pela via da legalidade e da justiça. 

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