Justiça

Como a população negra foi excluída do processo eleitoral

Não serão os belos discursos, as propagandas grandiosas ou os comícios festivos de nenhum candidato ou partido político que possibilitarão horizonte mais plural, democrático e digno à população negra

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Esta pele que me cobre
Esta pele que me envolve o corpo,
Esta pele que me marca
E me faz único
Em meio a tantos,
Esta pele que me define,
Manto de extrema leveza,
Como a noite
Repleta d’estrelas,
Cobre o mundo,
A Terra inteira,
Pela preta
Preta pele,
Beleza que me acaricia
– A Pele (excerto), Fátima Trinchão

Dois mil e vinte e dois. Duzentos anos da Proclamação da Independência.

Em outubro, todos nós escolheremos o Presidente da República para chefiar o Poder Executivo da União, nos próximos quatro anos. Também serão escolhidos os Governadores dos Estados, Senadores, Deputados Federais e Deputados Estaduais.

Em Atenas, eleitores eram os “cidadãos”: homens gregos adultos e livres. Sistema direto de democracia, com a participação estimada de 10% da população da cidade-estado. Mulheres, Metecos (estrangeiros) e pessoas escravizadas não faziam parte da democracia ateniense.

No Brasil Imperial, precisamente em 1824, ocorreu a primeira eleição nacional para a Assembleia Legislativa. Participaram somente os homens com 25 anos (ou 21 anos, se casados), com renda anual mínima de 100 mil réis para votar e de 200 mil réis para ser votado (voto censitário).

Os homens iletrados poderiam votar e serem votados. Além do restrito número de eleitores, a eleição ocorria em sistema indireto: os cidadãos eleitores (eleitores de paróquia) elegiam os representantes (eleitores de província) e estes escolhiam os ocupantes das cadeiras da Câmara e do Senado.

Os candidatos aos cargos de deputados e senadores deveriam comprovar a renda anual de 400 mil réis e 800 mil réis, respectivamente.

As mulheres, os homens livres com renda inferior aos limites mínimos e as pessoas escravizadas não participavam do processo eleitoral. Deveras, estes sequer possuíam direitos subjetivos, pois eram, juridicamente, tratados como bens (coisas) de seus senhores.

O Decreto nº. 3.029, de 9 de janeiro de 1881 (Lei Saraiva), instituiu o título de eleitor e o voto direto foi adotado para os cargos eletivos (senadores, deputados da Assembleia Geral e membros das Assembleias Legislativas). Afastou-se, parcialmente, a obrigatoriedade de comprovação de renda, permanecendo o requisito censitário aos não-católicos e aos imigrantes que comprovassem possuir renda mínima não inferior a 200 mil réis.

Exigiu-se, porém, que o eleitor fosse alfabetizado. Na época, a taxa de analfabetismo era entre 75% e 80% da população em geral.

Adveio a Lei Áurea, em 1888, mas pouco ou nada mudou para a população negra, majoritariamente sem acesso à alfabetização. Por longo tempo, aliás, as condições de alfabetização e letramento pouco se alteraram.

A partir da década de 1930, puderam participar do processo eleitoral os homens maiores de 21 anos e as mulheres que comprovassem possuir renda. Os analfabetos continuaram excluídos do processo eleitoral, precisamente até as eleições de 1986.

Em números aproximados, a taxa de alfabetização variou de 35% (1940) da população total (negros e não-negros) maior de 5 anos a 65% (1980). Considerada somente a população negra, a variação é ainda mais dramática, de aproximadamente 25% de alfabetizados nos anos 1940, a 57%, nos anos 1980.

O voto dos analfabetos foi permitido a partir de 1986, confirmado pela Constituição Federal de 1988, permitindo a universalização da participação popular no processo de escolhas proporcionais e majoritárias, ao menos no aspecto formal.

Nestes 200 anos de Independência, muito há por fazer no árduo caminho da luta antirracista. O processo eleitoral foi elitizado por mais de três quartos deste período, ora por renda, ora por escolaridade, ora por ambos. Além desse caráter economicamente excludente, evidencia-se o viés racista, misógino e machista, por mais de um século.

Não serão os belos discursos, as propagandas grandiosas ou os comícios festivos de nenhum candidato ou partido político que possibilitarão horizonte mais plural, democrático e digno à população negra.

A luta é e sempre será permanente e muito difícil, não tenhamos dúvida, nem criemos falsas esperanças de que, com um simples apertar de botão da urna eletrônica, séculos de desigualdade, de discriminação e de racismo serão apagados. Infelizmente, não serão.

Nas últimas eleições, o número de candidatos pretos e pardos alcançou o índice de 49,9%, superando o número de candidatos brancos, que foi de 48,1%. É um primeiro passo, não há dúvida, embora as pautas dos candidatos, no que se refere à luta antirracista não sejam coincidentes. A nossa realidade eleitoral, porém, de profunda exclusão da mulher e do homem negro em grande parte da história política brasileira, ainda é um fardo que afasta discussões dessa natureza da Ágora.

Os números dos eleitos são ainda desanimadores e muito distantes da representação proporcional desejada. 15% (77 deputadas) da Câmara dos Deputados é a representação feminina; 24,3% (104 pardos e 21 negros) é o percentual de deputados federais autodeclarados pretos e pardos. A população é formada por 55% de negros e 44,2% de brancos, 51% de mulheres (2010). Essa representação política sexual e racialmente desequilibrada e desproporcional demonstra o resultado catastrófico de décadas de dominação branca e masculina.

Onde as leis são criadas, numa sociedade desigual e racista, como a nossa, é imprescindível que as representantes e os representantes eleitos tenham plena consciência e ativismo na luta antirracista.

Obviamente, havemos de nos perguntar se as diferenças ideológicas entre as diversas colorações partidárias não reforçam esse legado destrutivo para a população negra. Tal reflexão, todavia, deve ser realizada com muita sabedoria e profundidade por cada um de nós, neste ano e a cada dia. E em todos os momentos.

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