Justiça

Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês

Tivemos mulheres negras eleitas por todo o país, mas não o suficiente para que possamos ter uma democracia representativa de fato.

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“ Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”

A citação é de um trecho do samba enredo 2019 da Mangueira, a escola de Samba Carioca, que entoa um hino de denuncia ao apagamento da verdadeira história do Brasil, citando mulheres negras aguerridas como Marielle, que foi covardemente assassinada, em 14 de março de 2018, quando ocupava o cargo de vereadora da Cidade dita Maravilhosa, em pleno ano eleitoral.

Alvejada e morta, Marielle continuou viva dentro de cada uma das mulheres negras que como ela lutavam e lutam por justiça social, contra o genocídio da população negra, pelos direitos reprodutivos das mulheres, pelo combate ao racismo que mulheres negras enfrentam no SUS, dentre tantas outras coisas, inclusive pelo direito de serem simplesmente vistas e tratadas como seres humanos.

Não foi possível ser uma mulher negra com consciência de raça, gênero e classe naquele 14 de março de 2018 sem se sentir alvo também, sem perceber o quanto existem pessoas que odeiam mulheres negras pelo simples fato de existirem.

“Mulher, favelada, preta e vereadora? Ah! É muita ousadia!” , eles devem ter falado muitas vezes. “Quem ela pensa que é?”.

Mas todas as lágrimas de mulheres negras foram vertidas em gritos de “não daremos nenhum passo atrás!”.

No Estado do Rio de Janeiro, muitas mulheres negras, que por medo da violência iminente poderiam ter se afastado da política em todas as suas formas, foram aos partidos registrar suas candidaturas, pressionando por apoio a esse ato de coragem, posto que sempre foi vergonhosa a não valorização de mulheres negras como agentes da política do dia-a-dia, as que dialogam e sempre dialogaram com a base, por serem base.

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Lélia Gonzalez, referência na luta contra o racismo e pelos direitos das mulheres no Brasil.

Mulheres negras que estão na luta, nas trincheiras, não deveriam nem precisar ir até os partidos progressistas para pedir registro de candidatura e apoio. Deveriam ser convidadas e amplamente apoiadas, independente se fossem candidaturas chamadas orgânicas ou democráticas.

Só a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro terá 3 mulheres negras nas 5 cadeiras do partido que se coloca como o mais progressista, ocupando seus cargos como deputadas estaduais, tendo uma primeira suplente mulher negra, que por apenas 246 votos deixou de conquistar mais uma cadeira para tal partido.

Essa foi a resposta das urnas no Estado do Rio de Janeiro , mesmo diante de um cenário onde o conservadorismo e a violência da extrema direita quebrava em praça pública a placa que foi feita em homenagem a Marielle, com gritos de “vamos acabar com todos eles”.

Poderíamos ter eleito mais mulheres negras, se mais mulheres negras tivessem recebido apoio daqueles que se dizem progressistas mas não abrem mão de seus privilégios em prol daqueles para quem eles dizem luta: a base.

Já foi dito por diversos cientistas políticos, como Safatle, por exemplo, que a resposta que o povo que foi para as ruas em 2013 queria era uma mudança radical, que podemos também entender como mudança de atores no cenário político. O povo clamava por renovação e inovação (que são conceitos políticos diferentes, mas precisam ser complementares).

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Mulheres negras representam o maior grupo demográfico brasileiro, 27% da população, não obstante estejam subrepresentadas na política institucional.

Essas mulheres deveriam ter sido apresentadas pela ala progressista como essa mudança radical, tomando como exemplo a eleição de Marielle, que em 2016 foi a quarta vereadora mais votada na cidade do Rio de Janeiro.

Tivemos mulheres negras eleitas por todo o país, mas não o suficiente para que possamos ter uma democracia representativa de fato.

Apenas tomando como exemplo a Câmara Federal dos Deputados, que conta com 513 cadeiras, apenas 10 eram ocupadas  por mulheres negras até antes das eleições do presente ano.

Trata-se de evidente e vergonhosa inobservância da democracia representativa.

Mulheres negras, que estão na base da pirâmide social, sofrendo opressão de classe, raça e gênero não se veem representadas em cargos de poder na política institucional. Portanto, como falar em dialogar com a base sem que a base esteja ocupando esses cargos?

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Até quando esse grupo, que é o maior grupo demográfico brasileiro, terá suas pautas tratadas como secundárias?

Até mesmo as cotas de gênero que estão previstas no art. 10 da Lei 9504/97, que são ações afirmativas importantes para mulheres,  não observam o recorte racial, ou seja, ainda colocam mulheres negras como secundárias, pois as candidatas brancas receberam mais apoio do fundo partidário do que mulheres negras, além de maior apoio envolvendo visibilidade.

Inclusive, por essa falta de recorte racial nas cotas de gênero de candidaturas políticas, existe uma consulta da EDUCAFRO ao TSE sobre a possibilidade de se implementar esse recorte, que é uma consulta que reivindica a observação dos princípios democráticos desse Estado que ainda é de Direito.

Com a morte de Marielle, esse tema que já vem sido debatido há anos por diversas mulheres negras, tais como Lélia Gonzalez, Benedita da Silva, Jurema Batista, Sueli Carneiro, entre outras, tomou uma dimensão maior, inclusive com a criação de campanhas nacionais como a #MulheresNegrasDecidem, da Rede Umunna e de fundos internacionais de apoio as políticas empreendidas por mulheres negras brasileiras em várias frentes.

Sob esse aspecto, importante citar Laura Sito, que é escritora, jornalista  e vereadora suplente da cidade de Porto Alegre. Vejamos:

“Acredito fortemente que a construção de algo novo virá de quem hoje está fora dos espaços de poder, dando luz a novos atores sociais.
A década de governos populares, de Lula e Dilma, trouxe um grande número de políticas públicas para a população negra do país, mas hoje as experiências nos evidenciam os gargalos e os equívocos em relação à existência de políticas públicas de emancipação das mulheres negras. Dentro disso, abre-se um questionamento rotineiro sobre por que deixar quase um quarto da população brasileira completamente à margem de qualquer elaboração política de alternativas para a crise, por parte de setores progressistas e de esquerda. Não seriam as mulheres negras, 23% da população brasileira, um setor estratégico para a construção de um novo cenário político e econômico? Parece-me difícil compreender que fiquem fora do cenário da elaboração política, considerando sua inclusão econômica marginal, além de sua função estruturante em nossa sociedade, Já que somos um País onde mais da metade de sua população (53%) é negra, sendo que uma parcela considerável dessas famílias é chefiada por mulheres, segundo o IBGE.”

Ainda existem correntes de pensadores que defendem a necessidade da criação de um partido negro para que mulheres e homens negros possam , finalmente, ter protagonismo na política institucional, como se a criação de partidos políticos no Brasil fosse algo fácil. Portanto, nesse sentido, é importante considerar mais acertado o pensamento da ativista e filósofa Angela Davis:

Angela Davis durante um discurso em Oakland, 1969

“Eu certamente não acredito que os partidos políticos existentes sejam capazes de compor nossa principal luta, mas penso que a arena eleitoral pode ser aproveitada como um terreno em que nos organizemos. Nos Estados Unidos, há muito tempo precisamos de um partido independente – um partido da classe trabalhadora, feminista e antirracista. E você está totalmente certo em identificar o ativismo de base popular como ingrediente mais importante na construção dos movimentos radicais.”

Ou seja, é preciso que os partidos existentes e que em seus estatutos estão prometendo lutar pelas pautas que dizem respeito a esse grupo, cumpram com suas promessas.

Para isso, é preciso que esse grupo , qual seja o de mulheres negras, esteja nesses espaços, pois não há mais o que se fazer por mulheres negras sem mulheres negras tendo voz e poder de decisão.

Seria importante que o ingresso desse grupo nesses espaços fosse através de convites, com acolhimento e o devido reconhecimento da importância intelectual e de vivência, sem práticas de silenciamento. Mas, talvez, pensar isso seja puro romantismo.

Portanto, há que existir a ocupação, porque a esperança de um novo marco civilizatório no Brasil está no apostar em mulheres negras.

Se não entenderem isso o mais rápido possível, o que já é tarde poderá ser mesmo tarde demais, com processo de retrocesso capaz de derrubar as poucas conquistas,  mas consideráveis, com um vislumbrar muito distante de retomada da efetivação de políticas que façam cumprir, efetivamente, o pacto social estabelecido em nossa Constituição cidadã de 1988.

Laura Astrolabio é advogada, mestranda de políticas públicas em direitos humanos do NEPP-DH da UFRJ, com pós graduação latu sensu em direito público, experiência com direito do servidor público federal e com compliance anti assédio moral nas relações de trabalho, inclusive no serviço público federal.

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