Justiça

Antes de tudo, sou uma mulher de Oxum!

Sou professora; sou advogada, mas foi no chão do terreiro que entendi que a roda do Xirê gira em sentido anti-horário não por acaso.

Foto: Jennifer Glass - Fotos do ofício
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Muitos me dizem: “nasceu em berço de Ouro”. O discurso é compreensível e atravessado pelos enredamentos de um país onde o tom da pele hierarquiza e concede privilégios. Porém, o que muitos não imaginam é que eram dois trabalhos precários aos 17; que muitas vezes o almoço era dentro da condução no trajeto entre um e outro, e que, mesmo assim, não pagavam a faculdade de comunicação social que ingressei aos 18. Poucos anos depois, com a maternidade, sem registro em carteira e direitos mínimos, os estudos tiveram que esperar.

Direito era um sonho de menina e o desejo do meu pai que sempre dizia que eu ia ser juíza. Retornei à universidade, quando deu. Ou “tardiamente”, como muitos gostavam de me lembrar. Mas pensei, “agora vou fazer o que gosto”. Durante a faculdade, passei em dois concursos públicos em 12° lugar. Sim, o doze é meu número da sorte. Recebi diversos prêmios e, ao final, o de melhor aluna dos cinco anos de curso. Emendei pós-graduação; mestrado e, agora, sou aluna do doutoramento na Universidade de Coimbra, contemplada em primeiro lugar.

Tenho muito orgulho da minha trajetória, mas estou atenta. Não romantizo mazelas sociais.

Num país contaminado pelo discurso da meritocracia, não é fácil fazer o caminho inverso. Por muito tempo, tentei justificar, envergonhada, os percursos que tive que trilhar, até entender que a nossa dinâmica pode ser outra e, muitas vezes, é necessariamente outra. Foi no chão do terreiro que entendi que a roda do Xirê gira em sentido anti-horário não por acaso.

Oxum sempre foi presença. Nasceu comigo, renasceu em mim e me resgatou. Dizer isto, aqui, é muito simbólico para mim e representativo para desconstrução de estereótipos racistas. No entanto, é também uma advertência aos desavisados, porque ser de Orixá não é tarefa fácil; não é cult; nem é moda. A Coroa pesa e tem que ter muita disposição para mantê-la firme ao Ori.

Carregar Orixá é assumir responsabilidades. É carregar o comprometimento com uma luta ancestral da qual somos produto. É a incumbência da continuidade. É não engolir uma modernidade colonial que subalterniza nossas epistemologias; inferioriza nossos modelos de organização social, nossas vestimentas, nossos fios de conta, nossas músicas, nossos cultos e rituais.

Ser de Orixá é assumir um trabalho de luta profundo e constante. Ser de Orixá é ato político. É inconformismo, é resistência, e é, sobretudo, estratégia para alcançar uma sociedade em que pretos e pretas não precisem mais se curvar. A luta é por aquilo que é nosso. É contra as regras que nos demonizam, desumanizam e nos colocam à margem.

Aprendi que pisar no chão de terreiro, nos obriga a travar esta luta. Mas, reitero: não dá para romantizar. É preciso estar pronto para se assumir de Orixá num país construído sob o derrame de sangue preto. Não é tranquilo. O sistema é ardiloso e racista. É preciso se aprontar para as portas que se fecham; para oportunidades que se vão; para lidar com o questionamento de sua capacidade e intelectualidade.

Todavia, é fundamental estar alerta. Uma hora este caminho terá de ser trilhado. Até para que outras portas possam se abrir no lugar onde caibamos com o peso das nossas histórias e as complexidades da nossa humanidade. A transformação não virá enquanto tivermos que nos encaixar nesta dualidade eurocêntrica na qual à mulher inteligente não cabe beleza e sensualidade; onde seriedade profissional se mede pela largura do sorriso ou por fotos de biquíni em rede social; e respeito estiver condicionado aos padrões de conduta ocidentais.

Oxum é a mais bela das mulheres e, inseparavelmente, a mais inteligente e politizada. Ela sabe o que quer, como quer e o que fazer com isto. Que possamos resgatar e assumir a sabedoria de Oxum em direção a um lugar onde possamos respirar com dignidade, respeitando, sem culpa, nossas contradições naturais.

“O processo é lento”, já dizia o mestre Brown, mas não temos pressa, porque não vamos desistir. O nosso Tempo não é o do relógio imediatista do Capital, porque vidas não são grandes massas a manobrar. Respeitamos as individualidades sem sermos individualistas, porque sabemos que a felicidade só é possível na coletividade. Depositamos nossos pedidos na farofa de dendê e mexemos com as mãos, porque sabemos que cada um só pode dar aquilo que tem. Sabemos que ter Axé é, antes, ter gratidão que, para além de um ato de amor, é reconhecimento e reverência àqueles que vieram antes e nos permitiram chegar até aqui.

Depois que entendi que aquele “berço de Ouro” vem de Oxum, parei de tentar explicar o inexplicável. A realeza mora em mim. Hoje, eu posso dizer que sou acadêmica; sou professora; sou advogada. Mas, antes de tudo, eu digo: sou uma mulher de Oxum!

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