Justiça

A vida imita Hollywood

Uma operação desvenda esquema de alvarás falsos para liberar traficantes de armamentos que abasteciam facções e milícias 

Em quatro anos, o esquema contrabandeou mais de 300 mil munições de uso restrito para o crime organizado
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Terça-feira, 18 de novembro de 2020. O termômetro marca 34 graus na cidade do Rio de Janeiro. Por volta das 5 da tarde, os portões do Complexo de Bangu abrem-se e um homem de estatura média, 31 anos, coloca sua máscara, pega seus documentos, acena para os policiais e sai pela porta da frente, não sem se despedir do agente que faz a guarda. Mais um dia normal na penitenciária? Longe disso. O preso libertado, saber-se-ia depois, por meio de um alvará falso, é um dos criminosos mais procurados do País, com conexão no exterior e responsável por municiar com fuzis algumas das facções mais poderosas, entre elas o Comando Vermelho, a Amigo dos Amigos e o Terceiro Comando Puro, sem falar nas milícias cariocas. 

A liberação de João Filipe Barbieri, filho de Frederik, o “Senhor das Armas”, o maior traficante de armamentos do mundo, levou o Ministério Público e a Polícia Federal a colocar na rua a Operação Camaleão.com em 24 de março. A 10ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro expediu 16 mandados de busca e apreensão e quatro de prisão em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e São João de Meriti. Além de Barbieri, João Victor Roza, seu comparsa, havia sido liberado por meio de um alvará falso em outubro do ano passado, um mês antes da cena descrita no início desta reportagem. “Eles eram responsáveis por abastecer facções e milícias não só no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil. Chama muita atenção o quão ruim era a falsificação dos documentos, enviados via Gmail. Foi por isso que batizamos a operação de Camaleão.com. Temos algumas perguntas a responder: por que o ‘sarqueamento’, o procedimento de checagem de outras sentenças em outros casos, não foi feito? Como não perceberam que o alvará falso era assinado pela 8ª Vara Federal, quando o caso deles havia subido e caberia ao TRF-2?”, levanta Eduardo Benones, coordenador do Núcleo de Controle Externo do Ministério Público Federal, em entrevista exclusiva a CartaCapital.

João Filipe Barbieri saiu pela porta da frente de Bangu, sem ser incomodado

Um falso oficial de Justiça, identificado como José Pacassi, teria enviado à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária, por um e-mail pessoal vinculado ao Google, um alvará de soltura expedido por uma juíza de plantão da 8ª Vara Federal de Justiça do Rio de Janeiro em 13 de novembro. Um funcionário chegou a expor suas suspeitas ao coordenador de classificação, responsável pela entrada e saída de presos. Três dias depois, uma ordem de cumprimento do alvará assinada supostamente pela mesma juíza federal foi enviado também por e-mail. Os avisos do servidor público não foram levados em conta e, no dia 18, Barbieri atravessou calmamente os portões da penitenciária rumo à liberdade.

Condenado a 27 anos e 12 dias de prisão, o traficante de armas era o elo entre seu pai, Frederiki Barbieri, que possui dupla cidadania, e as facções. A ousadia das ações do grupo virou lenda na crônica policial. Em 2017, a PF apreendeu no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, um carregamento com 60 fuzis, 60 carregadores e 140 munições. A operação deu início a uma investigação mais profunda da quadrilha e resultou na prisão de Barbieri naquele mesmo ano. Segundo cálculos dos investigadores, o “Senhor das Armas”, representado pelo filho, conseguiu em um período de quatro anos traficar para o Brasil 1.043 fuzis, 300 mil munições de uso restrito e ao menos 1.043 carregadores, em geral escondidos em carcaças de aquecedores de piscinas e de bombas d’água, transportados em cargas aéreas saídas de Miami e recepcionadas no Galeão, como se fossem simples malas. Entre 2014 e 2017, o grupo valeu-se do esquema ao menos 75 vezes, por meio de um dos maiores e mais movimentados aeroportos dos Estados Unidos, saudado em programas televisivos como um dos mais seguros do país.

Na hierarquia da organização chefiada por Frederiki, cabia à esposa Ana Cláudia dos Santos e a João Filipe, agora foragido da Justiça, coordenar os diferentes braços da organização. Os dois eram responsáveis por adquirir os aquecedores de piscina e as bombas d’água, tirar seus motores e pesar, de modo a garantir que os equipamentos recheados com armas tivessem o mesmo peso do original  e não chamassem atenção dos fiscais. As remessas vinham embrulhadas em sacos plásticos pretos acondicionados em palets (caixas de madeira) e garantidos por notas fiscais de compra de quatro “importadoras” brasileiras. Ao chegar ao Brasil, as armas seguiam para um esconderijo no Centro de Niterói. Cabia a João Victor Roza, o outro foragido, vender os fuzis, a munição e os acessórios aos integrantes das facções e das milícias. Em depoimento à Justiça, um dos presos afirmou que um fuzil de uso restrito, novo, como aqueles apreendidos no Galeão, custa entre 37 mil e 50 mil reais. 

Barbieri cuidava dos negócios lucrativos da família no Brasil. A ousadia era uma marca (Foto: Reprodução/TV Globo)

Responsável pelo inquérito, Benones enviou ao FBI, aos aeroportos de Miami e Galeão e ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos pedidos de informações no âmbito da colaboração internacional iniciada após a apreensão em 2017, mas que havia “esfriado”, segundo ele. “É assustador 60 fuzis viajarem do espaço aéreo norte-americano para o brasileiro e repetir isso 75 vezes sem ninguém ‘perceber’. Existem elementos internacionais envolvidos e vamos estabelecer uma linha de investigação conjunta.”

Drogas e armas traficadas costumam chegar ao Brasil por meio de contêineres em portos. Outra rota muito usada são as rodovias. Os aeroportos em geral são evitados justamente por causa da forte fiscalização. No caso específico, ela falhou 75 vezes e esse “descuido” desperta dúvidas a respeito do envolvimento no esquema de funcionários públicos federais, policiais entre eles. Na apreensão de 2017, “falhas de procedimento” de servidores da segurança pública e policiais culminaram em uma investigação aberta pelo Ministério Público por “possível ilegalidade e não atuação das polícias na apreensão de carga ilegal no terminal de cargas”.

A quadrilha enviava fuzis do aeroporto de Miami para o Galeão, no Rio

A mesma suspeita se aplica na fuga dos criminosos. A falsificação grosseira e o alerta ignorado de um funcionário não passaram em branco. O procurador evita detalhar essa linha de investigação, por conta do sigilo, mas ressalta as falhas no sistema. “Como investigador, não posso fazer afirmações levianas, mas pela grandeza e gravidade dos fatos acredito em participação de ponta a ponta. Também não posso descartar uma participação internacional em todo processo.” Documento da Justiça dos EUA obtido por CartaCapital mostra que Frederik, o “Senhor das Armas”, está sob probation system, ou seja, sob uma espécie de condicional, na qual o suspeito fica sob tutela da Justiça, mas não encarcerado. Seu filho e o comparsa estariam escondidos no Brasil, acreditam os investigadores.

A Operação Camaleão.com prendeu ainda um estelionatário bem conhecido, Arlésio Luiz Pereira Santos, que se dizia advogado e seria o “mentor” das falsificações, e duas advogadas, Débora Albernaz de Souza, defensora de Santos, e Angélica Coutinho Malaquias. Por ter abastecido as milícias cariocas, não se descartam os elos com a apreensão, em 2019, de 117 fuzis desmontados na casa de um amigo do miliciano Ronnie Lessa, chefe do Escritório do Crime, acusado de executar Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes.

A saída dos dois criminosos pela porta da frente do Complexo de Bangu foi classificada como um “baque” para integrantes da Segurança Pública do Rio de Janeiro. Servidores acreditam que se trate do episódio mais “constrangedor” desde a fuga do fundador do Comando Vermelho, Escadinha, de Ilha Grande em um helicóptero, em 1985. “No Brasil o crime está cada vez mais organizado. Além de uma infinidade de tecnologias disponíveis, houve avanço nas relações com o poder. Estamos falando de representantes em casas legislativas, ‘parceiros’ na Câmara dos Deputados, Senado, e até no próprio Executivo Federal. Eles estão totalmente enfronhados nos espaços de poder e ainda fortalecidos com o discurso oficial e políticas de Estado”, afirma o antropólogo Lenin dos Santos Pires, diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense.

A política de armar a população, mesmo em contradição com o Estatuto do Desarmamento, estimula o tráfico e, por consequência, amplia o poder de fogo do crime organizado. Segundo Pires, a libertação de presos federais com alvarás ilegais e “toscos” tem como pano de fundo uma falha histórica no sistema. “A Justiça e a Segurança Pública se pensam como sistemas descontinuados. Então há um espaço vazio entre os dois que é ocupado pelo que chamamos de procedimentalismo, formalismo. Isso culmina em um vácuo, um lugar no qual 40% dos presos em flagrante nem sequer passaram por julgamento, e ao mesmo tempo um espaço no qual um preso com status, como no caso de Barbieri, possui ‘benefícios’.”

Publicado na edição n.º 1151 de CartaCapital, em 1º de abril de 2021.

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