3ª Turma

A negligência neoliberal e o mito da ressocialização

Em entrevista à CartaCapital, Alessandro De Giorgi falou sobre as políticas penais neoliberais no Brasil e EUA

Pátio da penitenciária de Ribeirão de Neves, em Minas Gerais
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Alessandro De Giorgi é professor do Departamento de Estudos da Justiça da Universidade Estadual de San Jose, na Califórnia. Seus estudos abordam o punitivismo, o controle social, a etnografia urbana e a políticas penais. No Brasil lançou o livro “A miséria governada através do sistema penal”, que faz parte da coleção Pensamento Criminológico (editora Revan), onde escreve sobre o nascimento da sociedade industrial, o surgimento das penitenciárias e as relações entre desemprego e encarceramento em massa ao longo das crises econômicas.

Atualmente está conduzindo uma pesquisa etnográfica sobre as dimensões socioeconômicas do encarceramento em massa e a reentrada de prisioneiros na sociedade em Oakland, Califórnia, e quais são as principais dificuldades que enfrentam no processo de ressocialização em comunidades racialmente segregadas.

Nessa entrevista à CartaCapital, pude conhecer melhor o resultado das pesquisas de Alessandro, como também questioná-lo sobre as políticas criminais do Brasil anunciadas tanto por Bolsonaro, como por Sérgio Moro em seu intitulado Projeto Anticrime.

Igor Leone: O Brasil recentemente elegeu Jair Bolsonaro à presidência, um ex-capitão do Exército que atua na política há 26 anos e que durante esse período conseguiu a aprovação de apenas dois Projetos de Lei. Além do mais, toda sua trajetória é marcada por posicionamentos racistas, machistas e homofóbicos. Como Presidente da República, defende abertamente que a polícia execute suspeitos e criminosos sem que sejam julgados por isso. É também a favor da criminalização de movimentos sociais e da redução da maioridade penal. Uma de suas primeiras medidas foi assinar um decreto expandindo as possibilidades para a posse de armas. Enfim, como você avalia a ascensão de Bolsonaro?

Alessandro De Giorgi: A eleição de Jair Bolsonaro surpreendeu a muitos observadores, particularmente pelo fato de que, nos últimos anos, o Brasil havia testemunhado um ciclo de reformas progressistas sob os governos de centro-esquerda de Lula e Dilma Rousseff.

Ainda que o PT não tenha revolucionado o sistema político brasileiro, nem propôs soluções estruturais para as duradouras desigualdades raciais e de classe que assolam o país, algumas reformas significativas foram introduzidas nos campos da educação, proteção ambiental e política econômica. Essa agenda reformista de certa forma mitigou o impacto catastrófico da recessão global de 2007-2008 ao fornecer um mínimo de proteção social aos setores mais marginalizados da população.

No entanto, essas medidas não provocaram nenhuma transformação radical na estrutura econômica do Brasil, nem projetaram um modelo diferente de desenvolvimento econômico a partir do paradigma neoliberal que impulsionou o capitalismo global desde os anos 80. Assim, por um lado, a natureza profundamente racializada da desigualdade de classes no Brasil continua intocada, apesar da retórica progressista adotada pelos governos de centro-esquerda.

Alessandro De Giorgi – Professor do Departamento de Estudos da Justiça da Universidade Estadual de San Jose, Califórnia.

Por outro lado, o consenso neoliberal dominante foi seriamente enfraquecido por crises econômicas e financeiras cíclicas, com setores crescentes da sociedade expressando descontentamento com as promessas fracassadas de livre mercado e desregulamentação. Uma crise de hegemonia do paradigma neoliberal se materializou no último ciclo de lutas globais contra a austeridade – dos indignados na Espanha ao movimento Occupy nos EUA.

No entanto, esses movimentos sociais não conseguiram se consolidar em um projeto político alternativo, em grande parte como conseqüência da inadequação das instituições democráticas para fornecer representação a qualquer demanda radical de transformação social e da tendência contínua da esquerda institucional de submeter as demandas de movimentos sociais à uma agenda compatível com suas políticas.

Este vazio político é atualmente preenchido pelo surgimento de autoproclamados “populistas” em todo o mundo – das Filipinas aos EUA, da Europa a América Latina – que afirmam ser os verdadeiros representantes do “interesse nacional” ou da “vontade das pessoas “.

Na realidade, esses atores políticos não estão ficando ao lado do povo contra o modelo neoliberal de acumulação capitalista, eles não estão protegendo os interesses dos cidadãos comuns contra as elites corporativas globais, nem estão levando adiante qualquer plataforma política popular.

Em vez disso, eles incorporam um fascismo ressurgente baseado na xenofobia, homofobia, sexismo e supremacia branca, ainda que revestidos da retórica de lei e ordem.

Em todo o mundo esses “ditadores democráticos”, de Duterte a Trump, de Bolsonaro a Orban, acumulam capital político por meio de uma narrativa autoritária que enquadra os “outros” – imigrantes, populações indígenas, pobres, periféricos, profissionais do sexo, negros, usuários de drogas, etc. – como os inimigos públicos a serem neutralizados em nome de uma ordem social que perdeu sua legitimidade.

IL: Bolsonaro indicou o ex-juiz federal Sérgio Moro para o Ministério da Justiça e a sua primeira medida foi apresentar o Projeto Anticrime, um conjunto de mudanças legislativas, incluindo a importação do modelo norte americano de plea bargain, que vem sendo muito criticada por especialistas e advogados brasileiros. Sabemos que nos Estados Unidos o plea bargain é um dos principais fatores do encarceramento em massa, especialmente de jovens, negros e latinos. O que você acha dessa ideia de Sérgio Moro?

ADG: O que essas “reformas” incorporam é algo que já testemunhamos várias vezes no passado: a importação, particularmente pelas classes dominantes de sociedades caracterizadas por altos níveis de desigualdade social e segregação racial, de ideologias de lei e ordem feitas nos EUA.

A tendência de importar essas políticas penais draconianas tende a se intensificar sempre que as elites do poder percebem que a ordem social existente está perdendo sua legitimidade ideológica.

Quando percebem, em outras palavras, que a criminalização em massa dos excluídos e a mobilização da opinião pública contra os “inimigos públicos” são sua única esperança de manter alguma influência hegemônica sobre um pacto social cada vez mais fraturado.

É aqui que o populismo penal – a exploração ideológica de sentimentos punitivos invocados por pânicos morais movidos pela mídia sobre o crime e a insegurança – torna-se uma preciosa fonte de capital político para classes políticas amplamente desacreditadas.

Essa dinâmica se desdobra com particular virulência quando a agenda político-econômica das classes dominantes requer uma intensificação do atual regime de acumulação capitalista – por exemplo, através da implementação de estratégias neoliberais de mercantilização, desregulamentação e privatização em áreas cruciais como assistência social, educação, as proteções trabalhistas, o meio ambiente etc. – porque, nessas circunstâncias, os poderes penais do Estado tornam-se as ferramentas primárias da regulação social.

Onde a hegemonia das classes dominantes falha, a violência estatal se torna o único escudo contra a insurgência popular.

A mistura de políticas punitivas autoritárias (por exemplo, reduzir a maioridade penal, guerras às drogas, etc.) e a desregulamentação penal neoliberal (por exemplo, acesso ilimitado à posse de armas) prevista por este governo, perpetua uma imagem militarizada do direito e ordem entre as classes média e alta da nação, em grande parte branca, enquanto esconde a trágica realidade de que a principal ameaça à segurança das populações negra e indígena no Brasil é constituída precisamente pela polícia assassina e corrupta da nação.

Quanto ao plea bargain, este instituto representa um dos exemplos mais notórios de como as desigualdades raciais e de classe podem ser institucionalizadas dentro de um sistema de justiça criminal.

Nos Estados Unidos, 95% dos casos criminais são solucionados sem julgamento (isto é, por meio do plea bargain), e essa é uma condição essencial para o funcionamento do gigantesco sistema penal norte-americano.

Os pobres se declaram culpados de quaisquer crimes pelos quais são acusados, enquanto os réus de classe alta podem se dar ao luxo de contratar advogados particulares e se defenderem no tribunal. Isso equivale a uma negação sistemática de justiça para os grupos sociais pobres e racializados que compõem a grande maioria da população criminalizada nos Estados Unidos.

IL: Em virtude da Guerra às Drogas, o Rio de Janeiro e outros estados passaram por uma intervenção federal. Durante 11 meses, os militares ocuparam diversas favelas, realizaram cadastros de moradores, registros de controle, toques de recolher, mandados de busca coletivo e diversas outras violações de garantias constitucionais básicas que jamais ocorreriam em bairros nobres da cidade. A intervenção terminou recentemente e foi muito celebrada pelas Forças Armadas, apesar das dezenas de estudos de diferentes organizações de direitos humanos demonstrando que os altos custos da operação não tiveram retorno: o tráfico de drogas continua operando, centenas de civis foram mortos em tiroteios, escolas e hospitais tiveram o horário de funcionamento reduzido e os índices de violência continuam altos. Você enxerga um paralelo entre essa intervenção militar e a criminalização da pobreza?

ADG: Não vejo apenas um paralelo entre a militarização do policiamento e a criminalização da pobreza, mas vejo esses desenvolvimentos como dois componentes da mesma estratégia: o governo autoritário da insegurança social na era do neoliberalismo.

Apesar das diferenças inegáveis ​​entre os contextos nacionais, nas últimas três décadas assistimos a um desenvolvimento semelhante em várias sociedades capitalistas tardias: o crescente recurso às tecnologias penais como ferramentas primárias para regular os pobres.

Enquanto nos países europeus isso tomou a forma de uma criminalização em massa de migrações globais que resultou na dramática super-representação de migrantes do terceiro mundo nas prisões da Europa, nos Estados Unidos a criminalização da pobreza se desdobrou ao longo de três décadas de militarização da Guerra às Drogas, que tem como alvo desproporcional os moradores negros e pardos marginalizados das cidades do interior; e em muitos países da América Latina, os principais alvos dessas estratégias punitivas têm sido pessoas pobres, negros e populações indígenas.

Não devemos esquecer que a implantação de tecnologias militares originalmente concebidas para cenários de guerra em operações domésticas de lei e ordem tem uma longa história nos Estados Unidos, que começou na década de 1960 como parte das estratégias de contra-insurgência elaboradas pelo governo dos EUA contra a sociedade civil, em especial movimentos negros.

Leia também: Para especialista, PL Anticrime de Moro deve aumentar as injustiças

Intervenção Militar no Rio de Janeiro

Isso é mais evidente em países como o Brasil e outras nações latino-americanas que testemunharam os horrores das ditaduras militares e onde o policiamento militarizado está frequentemente embutido na “constituição material” da nação.

Se essas estratégias são eficazes ou não para aumentar a segurança pública, isso não é um problema, porque o objetivo dessas operações nunca é realmente reduzir o crime, limitar o tráfico de drogas ou tornar as ruas mais seguras.

Pelo contrário, seu objetivo é produzir uma demonstração de poder estatal através da realização de seu monopólio absoluto sobre o uso da violência.

Um espetáculo de força letal que é amplamente simbólico aos olhos das classes média e alta, que podem se dar ao luxo de viver confortavelmente em seus condomínios fechados, mas amplamente material sobre as populações pobres, negras e marginalizadas, que são sistematicamente alvos do Estado. 

IL: Poderia contar um pouco sobre a sua pesquisa “Reentry to Nothing”, a respeito das consequências socioeconômicas do encarceramento em massa?

ADG: Todos os dias, nos Estados Unidos, perto de 1.700 pessoas são libertadas da prisão para serem despejadas de volta nos bairros urbanos pobres de onde foram tiradas.

Elas são desproporcionalmente negras ou latinas, pobres, desempregadas, sem escolaridade e moradia e sofrendo de alguma doença física ou mental. Além do mais, seu registro criminal acaba servindo de estigma, sancionado pelo Estado, que normaliza seus status como cidadãos de segunda classe. 

Em uma tentativa de documentar as muitas formas de sofrimento social sofridas por essas pessoas, entre 2011 e 2014 realizei um trabalho de campo etnográfico em Oakland, Califórnia, com um grupo de homens recentemente libertados da prisão e que enfrentavam o desafio da reintegração.

Acompanhei eles enquanto procuravam emprego, moradia, solicitavam serviços sociais, lutavam contra o vício das drogas, dormiam em seus carros e às vezes eram presos novamente. Durante esses anos, sentava-me ao lado deles enquanto mendigavam na rua, emprestei dinheiro e comprei comida quando não tinham nada para comer.

As pessoas libertadas da prisão que não tiveram a sorte de serem apanhadas nos portões da prisão por algum amigo ou parente, são descarregadas na estação de ônibus mais próxima, muitas vezes no meio da noite, apenas com uma sacola de roupas velhas.

Todos os dias, nos Estados Unidos, perto de 1.700 pessoas são libertadas da prisão.

De volta às ruas da cidade, eles precisam lutar para sobreviver como trabalhadores de baixa renda ou, mais freqüentemente, na economia clandestina, como traficantes, recicladores e mendigos cronicamente desempregados.

Um grande número delas enfrenta uma luta solitária pela sobrevivência, ao mesmo tempo em que lidam com traumas psicológicos graves, vícios de drogas e problemas de saúde não tratados.

Os anos que passei no campo permitiram-me testemunhar não só o sofrimento inimaginável experimentado por essas pessoas, mas também o amplo abandono social e institucional que enfrentam diariamente – da falta de assistência médica e moradia à privação de alimentos e apoio psicológico.

As condições de vida que testemunhei durante meu trabalho de campo me permitiram documentar o que outros críticos da virada punitiva americana (como Loic Wacquant) teorizaram há algum tempo: o gigantesco Estado carcerário construído nos Estados Unidos nos últimos quarenta anos é apenas um lado de um problema muito maior, que é o desmantelamento sistemático de qualquer forma de apoio social para os pobres – o que eu chamo de “negligência neoliberal”.

IL: Quais foram as descobertas dessa pesquisa?

ADG: O objetivo inicial da minha pesquisa foi estudar os desafios enfrentados pelos ex-prisioneiros após serem soltos. Eu esperava retornar do meu trabalho de campo descrevendo uma extensa rede de controle pós-carcerário, vigilância contínua, policiamento agressivo, as condições da liberdade condicional e como essas tecnologias penais intrusivas representariam o principal obstáculo para a reintegração bem-sucedida de pessoas anteriormente encarceradas.

Em vez disso, acabei documentando a negligência pública generalizada, a indiferença institucional e o abandono programático dessas populações marginalizadas pelos setores social e penal do Estado.

De fato, observei o surgimento no gueto pós-industrial de um modelo de baixa intensidade de contenção urbana de populações excedentes, devolvido através de uma rede mal coordenada de atores, incluindo agências sem fins lucrativos, organizações religiosas, centros de reabilitação, programas habitacionais, etc.

Essas entidades estão encarregadas não só dos ex-prisioneiros, mas também das populações marginalizadas que habitam os centros urbanos – pessoas com doenças mentais, sem-teto, viciados em drogas, homens e mulheres cronicamente desempregados, etc. E operam sob um regime neoliberal, no qual as soluções favoráveis ​​ao mercado são concebidas como a única resposta a uma ampla gama de problemas estruturais enfrentados por ex-prisioneiros e outras populações marginalizadas.

Os chamados “serviços de reentrada” oferecem muitas sessões de preparação de currículos, oficinas de entrevista de emprego, aulas de controle da raiva, cursos de alfabetização, programas de reabilitação e aconselhamento em grupo – mas muito menos em termos de moradia acessível, assistência médica gratuita, educação acessível ou renda básica.

Esse modelo de prestação de serviços é perfeitamente consistente com a ideologia neoliberal de livre escolha, responsabilidade individual e mudança pessoal que é inculcada em populações criminalizadas em cada etapa de sua jornada pelo estado carcerário dos EUA, desde a prisão até a libertação.

Em outras palavras, se eles dormem em uma cama ou em um carro, têm um emprego ou empurram um carrinho, têm acesso a medicamentos ou não são tratados, seu processo de reentrada é considerado bem-sucedido, desde que eles não cometam nenhum crime.

Portanto, não deveria surpreender que, apesar das terríveis condições de negligência e abuso do sistema prisional dos Estados Unidos, as instituições penais representem agora uma das poucas fontes remanescentes de alívio público para os pobres no gueto pós-industrial. Afinal de contas, mesmo que as condições das prisões continuem sendo violentas e de privação, os presos têm acesso garantido a comida, abrigo e esporadicamente algum tipo de atendimento médico. 

Enquanto as condições de vida na base da hierarquia racial e de classe dos EUA se caracterizarem por pobreza econômica generalizada, abandono institucional e negligência pública, a “reentrada de prisioneiros” será pouco mais do que discurso retórico, e pessoas anteriormente encarceradas continuarão “voltando para o nada.”

Alessandro De Giorgi é professor do Departamento de Estudos da Justiça da Universidade Estadual de San Jose. Ele recebeu seu PhD em Criminologia pela Universidade de Keele (Reino Unido) em 2005. Antes de ingressar no Departamento de Estudos de Justiça foi pesquisador em Criminologia na Universidade de Bolonha (Itália) e pesquisador visitante no Centro para o Estudo de Lei e Sociedade, Universidade da Califórnia, Berkeley. Seus interesses de ensino e pesquisa incluem teorias críticas de punição e controle social, etnografia urbana e economia política radical. Ele é o autor de Repensando a Economia Política da Punição: Perspectivas sobre o pós-fordismo e a política penal (Ashgate, 2006) e A Miséria Governada Através do Sistema Penal (Revan, 2006). Atualmente, está conduzindo uma pesquisa etnográfica sobre as dimensões socioeconômicas do encarceramento concentrado e da reentrada de prisioneiros em Oakland, Califórnia.

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