3ª Turma

A liberdade sempre foi uma luta constante na América Latina

O racismo estrutura todas as relações estabelecidas no Brasil e de todos os lugares abaixo da linha do Equador.

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Repensar e querer mudar o mundo em que vivemos, suas normas e instituições sempre foi e ainda é visto com desconfiança e suspeita por muitas pessoas. Vimos na história, mulheres e homens que lutaram pelo fim da escravidão e como eram, muitas vezes, morta/os, criminalizada/os e perseguida/os pelas autoridades, sendo seus objetivos compreendidos ora como ameaças à ordem social ora como utopias. A luta pelo fim das prisões apresenta desafios semelhantes. Infelizmente, as mais de 800 mil pessoas presas no Brasil demonstram que a lógica punitivista permeia nosso sistema de justiça e até mesmo nossas relações de afetos, sendo compreendida como imprescindível para nossa vida em sociedade. Angela Davis, entretanto, explica que focar na abolição das prisões é “um projeto que envolve reimaginar as instituições, ideias e estratégias, e criar novas instituições, ideias e estratégias que tornarão os presídios obsoletos”. 

A luta pela liberdade sempre foi uma constante na América Latina e no Caribe. Basta lembrar da revolta na colônia francesa de Saint-Domingue, atual Haiti, onde meio milhão de pessoas escravizadas lutaram por sua liberdade em 1791. A luta pelo fim das prisões é a continuidade da luta pela liberdade já que o sistema de justiça criminal se firmou como um instrumento racista, classista, lgbtfóbico e sexista, sendo usado como garantia para que uma pequena parcela da população mundial lucre. Todavia, muitas pessoas acreditam na liberdade e agem de forma coletiva para encontrar caminhos para sua realização. Muita ações estão acontecendo nesta direção em várias partes do mundo e o Liberta Elas participou de dois encontros fortalecedores em 2019. No final do ano passado aconteceram em Quito (Equador), o Primer Encuentro Feminista LatinoAmericano Y del Caribe sobre Justicia: crítica de los sistemas penal y penitenciário hacia una justicia feminista e, em Fortaleza (Ceará), o IV Encontro da Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Esses dois encontros se propuseram a (re)pensar justiça, ações de desencarceramento, racismo institucional e políticas de drogas, além de proporcionar um lugar seguro para a escuta ativa, o fortalecimento individual e coletivo, a troca de experiências e conhecimentos e a (re)criação de redes. 

Durante os três dias do Primer Encuentro Feminista no Quito, várias mulheres da América Latina e Caribe que lutam diariamente por justiça e pelo fim do cárcere compartilharam suas experiências. Inúmeras são as ações realizadas que buscam repensar a justiça, fortalecer subjetividades, aliviar as culpas, além de trazer visibilidade, dignidade, lazer, apoio psicológico e liberdade às mulheres, crianças e adolescentes encarceradas/os. A Colectiva Hermanas en la Sombra (México) realiza um trabalho editorial há doze anos e tem mais de quinze livros publicados de autoria de mulheres que estão ou passaram pelo cárcere. A Colectiva acredita que a escrita é uma forma de gerar reflexão, viabilizando a reclamação por direitos e compreensão sobre as vivências no cárcere. A Defensoria Feminista e Círculo Social de Terapeutas de Valparaíso (Chile), é um coletivo de advogadas xamanistas que proporcionam um tratamento espiritual xamã como um momento anterior ao atendimento jurídico. Esses são exemplos das muitas ações que acontecem no cárcere e que demonstram a importância de nossa responsabilidade política individual e coletiva. Os diálogos, as trocas de conhecimento e afetos provenientes dessas experiências proporcionam reflexões sobre a justiça e como a buscamos. 

Adriana Guzmán das Feministas Comunitárias Antipatriarcales (Bolívia) trouxe importantes pontos em sua fala sobre justiça comunitária na abertura do encontro em Quito. Ao chamar atenção para a lógica tutelar e colonial do direito, Guzmám ressalta que a justiça está a serviço do individualismo e da propriedade privada, sendo a sentença uma ferramenta de disciplinamento e punição dos corpos indígenas, negros e femininos. Sob a perspectiva da justiça comunitária, o elemento pedagógico e o teor curativo entre as pessoas envolvidas em conflitos devem ser os elementos centrais. Amandine Fulchiron do coletivo Actoras de Câmbio (Guatemala) explica que a justiça deve acolher e escutar as pessoas que sofreram violações e violência, colocando-as no centro do processo onde suas histórias e experiências de vida sejam escutadas.

Desta forma, a justiça está relacionada ao acolhimento, ao suporte, ao cuidado, havendo uma responsabilidade com aquilo que nos seja comum. 

No Ceará, o IV Encontro da Agenda Nacional pelo Desencarceramento reuniu organizações sociais, coletivos, familiares de encarceradas/os e sobreviventes do sistema de justiça criminal de treze estados do Brasil para refletir e articular sobre as ações futuras da luta pelo desencarceramento e partilhar suas práticas e experiências. Assim como no Equador, a Agenda Nacional pelo Desencarceramento também se firma como um local de cura e fortalecimento individual e coletivo. Entre muitas ações realizadas por cerca de 25 organizações presentes no encontro, Marilza Barbosa, assistente social e moradora do Morro do Sossego (Duque de Caxias-RJ), compartilhou sua vivência como articuladora de território, membra da Frente Estadual pelo Desencarceramento do Rio de Janeiro e da Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense e do Movimenta Caxias. Marilza conta que voltou emocionada do encontro porque observou o protagonismo das/os familiares e das/os egressas/os do sistema prisional em diversos relatos. Segundo Marilza, é necessário compartilhar a realidade das unidades prisionais e socioeducativas do Brasil por meio de relatos das/os sobreviventes do cárcere e de suas/seus familiares. Essas trajetórias de vida rompem o silenciamento da sociedade sobre o cárcere a partir da experiência de quem sente diretamente as violências e as violações do Estado. Os relatos reverberam os dados de pesquisas existentes sobre as prisões do Brasil e demonstram, na prática, como o racismo estrutural e o genocídio da população jovem negra ocorre. 

Outro depoimento fortalecedor foi o da professora da Universidade Regional do Cariri, Zuleide Queiroz, que relatou as ações da pesquisa que realiza junto a Suzana Terto e a Raiane Bezerra sobre o encarceramento feminino. Essas três mulheres negras, integrantes da Frente de Mulheres do Cariri, atuaram em conjunto com a Defensoria Pública Estadual, a OAB Crato, o Escritório de Prática Forense da URCA e do Núcleo Especial de Defesa da Mulher, escutando durante dois dias todas as mulheres do presídio feminino do Crato, tendo como resultado o desencarceramento de 76 mulheres até dezembro de 2019. Zuleide ressaltou como o encarceramento leva a morte das pessoas, matando a população carcerária e seus familiares psicologicamente, afetivamente, socialmente e fisicamente. 

O final do encontro foi marcado pela fala de Regina Lúcia dos Santos, militante desde 1976 e que faz parte do Movimento Negro Unificado, grupo responsável por lançar a palavra de ordem todo preso é um preso político, e da Associação de Amigos/as e Familiares de Presos/Presas e Egressos/Egressas – AMPARAR. Regina explicou que o sistema prisional é a continuação do colonialismo, herança direta da escravidão no Brasil, sendo, portanto, a barbárie implementada de forma institucionalizada. Além disso, acredita que o racismo estrutura todas as relações estabelecidas no Brasil e de todos os lugares abaixo da linha do Equador. Segundo Regina, compreender o papel que o cárcere ocupa no sistema de opressão nos revela que as atuais políticas públicas de drogas e do aborto possuem como objetivo controlar os corpos dissidentes.

Todas essas trocas e experiências vividas pelo Liberta Elas nesses dois encontros foram fundamentais para formação e continuação das práticas do coletivo. Ao conhecer, escutar e aprender com a luta cotidiana das mulheres e todas as pessoas que atuam contra as violências e as violações do Estado no Brasil, Caribe e América Latina nos fortalecemos, relembramos que não estamos sozinhas e que apesar das dificuldades da luta pela liberdade, ela resiste e insiste em continuar. 

Para mais informações sobre a Agenda Nacional pelo Desencareramento, acesse facebook.com/agendanacionaldesencarcera 

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