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“Xenofobia no Leste Europeu não sofre controle nem censura”

Mídia e política em países europeus orientais difamam os refugiados, e expressões xenófobas não sofrem censura

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Por Alexander Andreev

Os atentados suicidas de 22 de março de 2016 em Bruxelas deram novo alento à argumentação insistente, de nacionalistas e eurocéticos do Leste Europeu, de que os novos migrantes constituiriam um grave risco de segurança à Europa. Isso independentemente da ausência de indícios concretos de uma conexão: os três autores já identificados dos atentados, por exemplo, eram todos nascidos na Bélgica.

Antes disso, porém, o tom adotado por diversos Estados da Europa do Leste no debate sobre a onda migratória já era de rejeição aberta aos refugiados – em contraste com o discurso “politicamente correto” do mainstream dos políticos das “velhas democracias” ocidentais.

Manifestações de xenofobia violenta ou velada se acumulam nos parlamentos, mídias e ruas da Polônia, Hungria ou Bulgária, entre outros.

Essa atitude, por sua vez, evoca, do outro lado, velhos clichês e preconceitos – de que as sociedades do Leste sejam fundamentalmente mais tradicionalistas e “atrasadas” e, portanto, mais propensas à rejeição dos diferentes e à discriminação inquestionada.

Em entrevista à DW, Juliana Roth, professora do Instituto de Comunicação Intercultural da Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, examina as raízes históricas e psicológicas de ambos os lados da questão. E expõe um quadro diferenciado e complexo, que força a repensar estereótipos.

“Vivemos numa época em que a inambiguidade de atribuições como ‘patriarcalismo versus liberalismo’ não se sustenta”, aponta a especialista em interculturalidade. “A globalização alterou muito as ordens sociais, mas, ao observar a Europa Oriental pós-socialista, o Ocidente ainda costuma partir de paradigmas ultrapassados.”

DW: A senhora constata uma xenofobia crescente na Europa do Leste. Em que consiste essa tendência?

Juliana Roth: O conceito de “Europa do Leste” é uma construção com considerável história. Ele nasce na Europa no século 18 e, desde o início, é marcado pela visão da parte oriental do continente como sendo “diferente”, “estranha”, “sinistra”, frequentemente também “atrasada”. Esses atributos praticamente não mudaram, até hoje.

Na realidade, as sociedades reunidas sob esse conceito pouco têm em comum. Elas diferem em religião, idioma, tradições, cultura e também nas respectivas histórias. Os pontos em comum são mais recentes, sobretudo a camisa de força do sistema soviético e as consequências políticas e mentais resultantes – uma das quais é a atual xenofobia crescente, que está estreitamente relacionada à época soviética.

Essas sociedades eram isoladas do mundo exterior, com mobilidade extremamente reduzida, quase sem contato com os mundos externos, nem mesmo com os “povos irmãos”. O olhar só estava voltado para dentro e para si mesmo, os estrangeiros quase não contavam. Mesmo os contatos com estudantes estrangeiros da África e da América Latina eram banidos. A internacionalidade, no sentido literal do termo, e o “pensar para além do próprio mundinho” eram grandezas desconhecidas.

A profunda mudança após a queda do sistema soviético acarretou muitas inseguranças em todos os setores da vida. A maior parte da energia das pessoas estava dirigida a vencer o dia a dia – o que deixava pouco espaço para ampliação de horizontes e civilidade.

Na busca por uma nova autodefinição, uma nova identidade, recorreu-se muito à fronteira que separa do outro, à divisão entre “nós” e “os outros”. No Báltico, por exemplo, contra os russos; na Eslováquia, contra a Hungria; na Romênia, contra os nômades roma, etc. Sempre houve um nacionalismo latente entre a população majoritária; diante das ondas de refugiados, hoje ele está sendo ativado e aprofundado.

DW: Isso só se aplica ao Leste Europeu?

JR: O tema “Leste Europeu xenófobo” recebeu grande atenção devido às querelas recentes dentro da União Europeia, e nesse processo se costuma recorrer aos estereótipos citados sobre a “Europa do Leste”. Ao mesmo tempo, porém, observamos em toda a Europa uma forte guinada em direção à xenofobia.

Então, onde está, aqui, o que seria especificamente “europeu oriental”? O medo do que é estranho é algo genericamente humano: uma reação emocional ao desconhecido, inesperado e ameaçador. No entanto, ainda que medo e rejeição do estranho sejam características gerais da psique humana, que encontramos por toda parte do mundo, a forma de lidar com esse medo varia muito de sociedade para sociedade.

De forma geral: nas “velhas” democracias europeias a xenofobia tem conotação negativa e é colocada sob controle político. Nas “novas” democracias, por outro lado, o fenômeno nunca esteve sob controle político ou social. Eu tento acompanhar o atual discurso sobre os refugiados nos meios de comunicação do Leste Europeu e fico apavorada com a liberdade que eles se dão ao difamar os refugiados de forma global. A linguagem dos políticos e comentaristas, mas também do “homem comum”, é de uma dureza xenófoba como que inquestionada.

DW: Nas sociedades europeias orientais – que, como a senhora diz, têm menos vivência com estrangeiros e cuja história democrática é mais recente – tradicionalismo e paternalismo predominam sobre o liberalismo. Isso também desempenha um papel?

JR: Discordo da formulação da pergunta, pois ela parte de um julgamento de valor. Nela, os modelos sociais ocidentais – democracia e liberalismo – recebem uma conotação positiva, enquanto ao “Leste” se atribuem os valores menos simpáticos, como tradicionalismo, familismo e patriarcalismo.

Nós vivemos numa época em que a inambiguidade de tais atribuições não se sustenta. A globalização alterou muito as ordens sociais; mostrando, acima de tudo, que comparações em preto e branco são pouco elucidativas. Tenho a impressão que a percepção ocidental do Leste Europeu pós-socialista parte de paradigmas ultrapassados.

Ao contrário do que o senhor supõe, diferentemente da Alemanha todas as sociedades do Leste Europeu têm uma experiência histórica de convivência com o estrangeiro. Em sua história, elas foram parte de estruturas estatais maiores: a russa, otomana, o Império dos Habsburgos.

A multiculturalidade dos antigos impérios era enorme, comparados aos Estados nacionais que se originaram deles; sua variedade de idiomas, religiões, tradições e culturas é hoje quase inimaginável. No entanto, essa diversidade era gerenciada com base em pontos de vista diferentes dos que nos agradam hoje em dia: hierarquicamente, numa convivência étnica regulamentada – bem distinto das nossas noções contemporâneas de integração.

DW: Como avalia as decisões e medidas dos políticos europeus orientais no tocante à política para refugiados?

JR: Os políticos da Europa do Leste estão numa situação “sanduíche”. Por um lado, têm que atentar para o clima em seus eleitorados nacionais – e neles dominam aqueles que rejeitam os estrangeiros. Além disso, precisam também satisfazer a suas alianças na política interna. Por outro lado, estão comprometidos a respeitar as restrições conjuntas das resoluções da União Europeia.

Na política para os refugiados, nós observamos que as correntes nacional e europeia vão se afastando gradativamente. No momento delineiam-se três orientações: a confrontação aberta com as diretrizes da UE; a adoção de posições nebulosas; e a prática da “cara dupla”. O fator comum entre todas as três variantes é a indisposição de obedecer à dominância de Bruxelas.

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