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‘Profetas do caos’ criam um falso debate sobre o Oriente Médio

A cada ato de violência, eles voltam a falar em ‘inverno islâmico’. Mas o que o mundo árabe-muçulmano precisa é de apoio aos moderados

Egípcios protestam em frente à embaixada dos EUA no Cairo. Os moderados precisam ser fortalecidos diante da força dos radicais. Foto: Khaled Desouki / AFP
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Há um falso debate em curso a respeito do Oriente Médio. Os protestos e a violência dos últimos dias (cujo pretexto foi o filme “Inocência dos Muçulmanos” e, depois, charges de Maomé publicadas na revista francesa Charlie Hebdo) fez comentaristas, à esquerda e à direita, se regozijarem por terem, supostamente, previsto o que consideram ser o desfecho da “Primavera Árabe”: o inevitável encaminhamento do mundo árabe-muçulmano para um radicalismo islâmico anti-Ocidente. Esses comentaristas sentem-se vitoriosos no debate contra aqueles que, segundo eles, previam o surgimento espontâneo de democracias após a derrubada de ditadores. Ocorre que este debate jamais se deu fora de suas mentes.

Nenhum analista sério poderia afirmar que o fim de regimes autoritários ensejaria o surgimento automático de democracias. Isso jamais ocorreu na história, porque a democracia é um processo e não um modelo único que pode ser simplesmente implantado. O que analistas debatiam, anos antes de a “Primavera” ter início, eram possibilidades de democratização de países árabes-muçulmanos. A discussão se dava nos seguintes moldes: o que o Ocidente pode fazer, no relacionamento com os governos e sociedades civis árabes-muçulmanas, para facilitar a democratização? Esses estudos partiam de premissa de que sociedades mais livres e igualitárias transformariam o Oriente Médio num lugar mais seguro.

Os “profetas” da radicalização islâmica inevitável agem movidos por uma visão carregada de preconceito. Basicamente, não acreditam que muçulmanos e árabes sejam capazes de viver em regimes democráticos. Englobam tudo o que vem do Oriente Médio como “Islã”. São, como definiu Edward Said, orientalistas. Como todo preconceito, este é movido pela ignorância, no sentido denotativo da palavra: a falta quase total de conhecimento a respeito do que ocorre no Oriente Médio. Três aspectos são particularmente relevantes.

O primeiro: as nuances do Islã político. A Irmandade Muçulmana no Egito e o Ennahda na Tunísia, partidos religiosos que venceram as eleições, são grupos que, ao menos por enquanto, pregam moderação e pragmatismo. Há um fosso de diferenças, ideológicas e práticas, entre esses partidos e os salafistas, religiosos ultrarradicais. No Egito, onde o presidente Mohamed Morsi foi eleito com o apoio dos salafistas, a coalizão Irmandade-salafistas está ruindo por conta dessas diferenças. Foram esses setores mais radicais que lideraram o ataque contra a embaixada americana, constrangendo o governo egípcio e a Irmandade perante a comunidade internacional.

É importante notar que nem todos os salafistas são violentos. No caso da Líbia, onde foi assassinado o embaixador Chris Stevens, grupos guerrilheiros salafistas, e violentos, foram os responsáveis pelo ataque. Eles representam, entretanto, uma fração marginal dos salafistas líbios. A maioria partiu para a vida política ou aderiu a instituições do nascente Estado líbio.

O segundo aspecto ignorado é o fato de que a opinião dos povos árabes agora importa. Com a queda de ditadores vieram à tona inúmeras forças políticas e sentimentos antes suprimidos pelo autoritarismo. O mais saliente deles é o anti-americanismo, que no Oriente Médio é abrangente e atinge religiosos e seculares, ricos e pobres, gente que vive no meio urbano e no rural. A origem deste sentimento é a história de golpes e guerras promovidos e apoiados pelos EUA no Oriente Médio nas últimas décadas. Lamentavelmente, inúmeros religiosos radicais, a maioria salafistas, usam seus sermões para estimular este sentimento, pregando o ódio e a violência. É este sentimento que os salafistas tentam manipular contra os governos moderados numa tentativa de ganhar apelo político.

O terceiro aspecto ignorado pelos “profetas” da radicalização é a existência de líderes religiosos muçulmanos moderados. Há inúmeros desses no Ocidente, mas há também no Oriente Médio. Ainda no dia 12 de setembro, um dia depois do início dos protestos, o líder da mesquita de Al-Azhar, principal escola de pensamento sunita do mundo, baseada no Egito, pediu que os muçulmanos respondam de forma “racional e objetiva” a ofensas a Maomé. Na terça-feira 19, Ali Gomaa, o grande mufti do Egito, maior autoridade religiosa do país, escreveu artigo no jornal The National (dos Emirados Árabes Unidos) afirmando que “a violência nunca é uma resposta aceitável à provocação”. Gomaa afirmou que o Islã tem uma “necessidade urgente” de encontrar líderes religiosos que possam desenvolver respostas dentro do Islã aos problemas da modernidade, criando um ambiente em que todas as pessoas possam coexistir.

O grande problema da visão desses “profetas do caos” é sua incapacidade de propor qualquer solução em termos de política internacional. Sua única sugestão é que novas provocações, como as charges da Charlie Hebdo, sejam feitas. Talvez seja uma tentativa de forçar a democracia goela abaixo. Talvez seja uma tentativa de “comprovar”, usando a reação da minoria, as impressões que têm da maioria de árabes e muçulmanos.

Um reflexo desta estratégia desastrada é estimular os radicais anti-Islã no Ocidente. Como conta Doug Sanders no jornal The New York Times, neste ano uma mesquita foi incendiada no Estado americano do Missouri e uma escola islâmica foi atacada com uma bomba de ácido no Illinois. A onda de islamofobia nos EUA, que engloba organizações, blogueiros, militares, jornalistas e políticos, surgiu no rastro do 11 de Setembro. Hoje ela é tão intensa que o , numa tentativa de romper este preconceito. Na Europa, a hostilidade ao Islã também é latente. Em 2009, a Suíça proibiu, em referendo, a construção de minaretes, a parte mais visível das mesquitas. Neste ano, uma pesquisa publicada pelo The Observer mostrou que, quando se trata de imigrantes muçulmanos, os britânicos são mais propensos a apoiar ideias e propostas de extrema-direita do que partidos que pregam o multiculturalismo. Muitas vezes, é desses grupos radicais ocidentais que surgem as provocações ao Islã, como o filme Inocência dos muçulmanos, cujo objetivo era instigar reações violentas e, assim, “provar” que o Islá é uma religião incompatível com a modernidade.

Ao retratar o “Islã” como um bloco único, generalizando alguns milhões de pessoas e simplificando sociedades extremamente complexas, esses “profetas” acabam por esconder o debate que realmente deve ser feito a respeito do Oriente Médio. O que a comunidade internacional pode fazer para ajudar Egito, Iêmen, Líbia e Tunísia, países que se livraram de seus ditadores, a trilhar um caminho que afaste o destino desses países do fundamentalismo religioso e do autoritarismo?

Há um falso debate em curso a respeito do Oriente Médio. Os protestos e a violência dos últimos dias (cujo pretexto foi o filme “Inocência dos Muçulmanos” e, depois, charges de Maomé publicadas na revista francesa Charlie Hebdo) fez comentaristas, à esquerda e à direita, se regozijarem por terem, supostamente, previsto o que consideram ser o desfecho da “Primavera Árabe”: o inevitável encaminhamento do mundo árabe-muçulmano para um radicalismo islâmico anti-Ocidente. Esses comentaristas sentem-se vitoriosos no debate contra aqueles que, segundo eles, previam o surgimento espontâneo de democracias após a derrubada de ditadores. Ocorre que este debate jamais se deu fora de suas mentes.

Nenhum analista sério poderia afirmar que o fim de regimes autoritários ensejaria o surgimento automático de democracias. Isso jamais ocorreu na história, porque a democracia é um processo e não um modelo único que pode ser simplesmente implantado. O que analistas debatiam, anos antes de a “Primavera” ter início, eram possibilidades de democratização de países árabes-muçulmanos. A discussão se dava nos seguintes moldes: o que o Ocidente pode fazer, no relacionamento com os governos e sociedades civis árabes-muçulmanas, para facilitar a democratização? Esses estudos partiam de premissa de que sociedades mais livres e igualitárias transformariam o Oriente Médio num lugar mais seguro.

Os “profetas” da radicalização islâmica inevitável agem movidos por uma visão carregada de preconceito. Basicamente, não acreditam que muçulmanos e árabes sejam capazes de viver em regimes democráticos. Englobam tudo o que vem do Oriente Médio como “Islã”. São, como definiu Edward Said, orientalistas. Como todo preconceito, este é movido pela ignorância, no sentido denotativo da palavra: a falta quase total de conhecimento a respeito do que ocorre no Oriente Médio. Três aspectos são particularmente relevantes.

O primeiro: as nuances do Islã político. A Irmandade Muçulmana no Egito e o Ennahda na Tunísia, partidos religiosos que venceram as eleições, são grupos que, ao menos por enquanto, pregam moderação e pragmatismo. Há um fosso de diferenças, ideológicas e práticas, entre esses partidos e os salafistas, religiosos ultrarradicais. No Egito, onde o presidente Mohamed Morsi foi eleito com o apoio dos salafistas, a coalizão Irmandade-salafistas está ruindo por conta dessas diferenças. Foram esses setores mais radicais que lideraram o ataque contra a embaixada americana, constrangendo o governo egípcio e a Irmandade perante a comunidade internacional.

É importante notar que nem todos os salafistas são violentos. No caso da Líbia, onde foi assassinado o embaixador Chris Stevens, grupos guerrilheiros salafistas, e violentos, foram os responsáveis pelo ataque. Eles representam, entretanto, uma fração marginal dos salafistas líbios. A maioria partiu para a vida política ou aderiu a instituições do nascente Estado líbio.

O segundo aspecto ignorado é o fato de que a opinião dos povos árabes agora importa. Com a queda de ditadores vieram à tona inúmeras forças políticas e sentimentos antes suprimidos pelo autoritarismo. O mais saliente deles é o anti-americanismo, que no Oriente Médio é abrangente e atinge religiosos e seculares, ricos e pobres, gente que vive no meio urbano e no rural. A origem deste sentimento é a história de golpes e guerras promovidos e apoiados pelos EUA no Oriente Médio nas últimas décadas. Lamentavelmente, inúmeros religiosos radicais, a maioria salafistas, usam seus sermões para estimular este sentimento, pregando o ódio e a violência. É este sentimento que os salafistas tentam manipular contra os governos moderados numa tentativa de ganhar apelo político.

O terceiro aspecto ignorado pelos “profetas” da radicalização é a existência de líderes religiosos muçulmanos moderados. Há inúmeros desses no Ocidente, mas há também no Oriente Médio. Ainda no dia 12 de setembro, um dia depois do início dos protestos, o líder da mesquita de Al-Azhar, principal escola de pensamento sunita do mundo, baseada no Egito, pediu que os muçulmanos respondam de forma “racional e objetiva” a ofensas a Maomé. Na terça-feira 19, Ali Gomaa, o grande mufti do Egito, maior autoridade religiosa do país, escreveu artigo no jornal The National (dos Emirados Árabes Unidos) afirmando que “a violência nunca é uma resposta aceitável à provocação”. Gomaa afirmou que o Islã tem uma “necessidade urgente” de encontrar líderes religiosos que possam desenvolver respostas dentro do Islã aos problemas da modernidade, criando um ambiente em que todas as pessoas possam coexistir.

O grande problema da visão desses “profetas do caos” é sua incapacidade de propor qualquer solução em termos de política internacional. Sua única sugestão é que novas provocações, como as charges da Charlie Hebdo, sejam feitas. Talvez seja uma tentativa de forçar a democracia goela abaixo. Talvez seja uma tentativa de “comprovar”, usando a reação da minoria, as impressões que têm da maioria de árabes e muçulmanos.

Um reflexo desta estratégia desastrada é estimular os radicais anti-Islã no Ocidente. Como conta Doug Sanders no jornal The New York Times, neste ano uma mesquita foi incendiada no Estado americano do Missouri e uma escola islâmica foi atacada com uma bomba de ácido no Illinois. A onda de islamofobia nos EUA, que engloba organizações, blogueiros, militares, jornalistas e políticos, surgiu no rastro do 11 de Setembro. Hoje ela é tão intensa que o , numa tentativa de romper este preconceito. Na Europa, a hostilidade ao Islã também é latente. Em 2009, a Suíça proibiu, em referendo, a construção de minaretes, a parte mais visível das mesquitas. Neste ano, uma pesquisa publicada pelo The Observer mostrou que, quando se trata de imigrantes muçulmanos, os britânicos são mais propensos a apoiar ideias e propostas de extrema-direita do que partidos que pregam o multiculturalismo. Muitas vezes, é desses grupos radicais ocidentais que surgem as provocações ao Islã, como o filme Inocência dos muçulmanos, cujo objetivo era instigar reações violentas e, assim, “provar” que o Islá é uma religião incompatível com a modernidade.

Ao retratar o “Islã” como um bloco único, generalizando alguns milhões de pessoas e simplificando sociedades extremamente complexas, esses “profetas” acabam por esconder o debate que realmente deve ser feito a respeito do Oriente Médio. O que a comunidade internacional pode fazer para ajudar Egito, Iêmen, Líbia e Tunísia, países que se livraram de seus ditadores, a trilhar um caminho que afaste o destino desses países do fundamentalismo religioso e do autoritarismo?

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