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“Os lobos estão de volta” à sociedade alemã?

Após passar por outras cidades que são palco de manifestações de extrema direita, instalação de arte-política chega à estação central de Berlim

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Você acaba de desembarcar na estação central de Berlim. Gente sem fim, barulho, malas. Seu caminho leva até a saída sul, na direção do Rio Spree, dos principais pontos turísticos e da área governamental. E de repente você se depara com uma horda de criaturas monstruosas, maiores do que um ser humano, espécie de lobisomens.

À medida que avança, elas o cercam. De goela escancarada, umas se lançam em sua direção, caretas de dragão, de gorila, lhe apontam uma arma, outras estendem a garra num gesto ameaçador – inegavelmente evocando a saudação nazista. Um grande cartaz amarelo alerta: “Favor não alimentar os lobos!”

Passado o primeiro choque, percebe-se a ordem nesse cenário de pesadelo: você acaba de adentrar uma exposição ao ar livre. Outros dizeres, menos sumários, explicam a presença das ameaçadoras esculturas no centro da capital alemã, a umas centenas de metros da sede do governo: “Os lobos estão de volta” (Die Wölfe sind zurück), repetem incessantemente os cartazes, às vezes como pergunta, outras como afirmação.

Processo de brutalização

O assunto não é ecologia – por acaso o fenômeno (real) do retorno do Canis lupus às áreas residenciais da Europa. A frase-pergunta é direcionada à sociedade alemã, na qual são inequívocos os sinais de um avanço do racismo, extremismo de direita, xenofobia e outras formas de violência de massa.

O autor do surrealista grupo de esculturas e das mensagens que as acompanham é Rainer Opolka, “fabricante de lanternas, autor e escultor” residente em Brandemburgo. A instalação Os lobos estão de volta é sua “tentativa de entender” esse processo de brutalização em seu país natal. Ele dedica o projeto “às vítimas da guerra, ódio e violência”.

O microcosmo alucinógeno-humanista criado por Opolka é ordenado de forma lógica: seus cartazes não só questionam e conclamam (“Berlim: Racismo não faz parte da nossa cidade”), mas apresentam exemplos, argumentam, reúnem dados estatísticos.

E vão buscar provas: na página no Facebook do partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha e em outras como Brauner Humor (Humor Marrom), em que os trucidados nos campos de concentração nazistas, em especial os judeus, são – 70 anos depois – assunto de escárnio e piada.

Monstros de metal e de carne e osso

A ordem igualmente reina entre os “lobisomens” de Opolka. Longe de constituir uma massa enlouquecida, as 66 estátuas se distribuem pelo espaço público com precisão militar, quase numa tática de combate, e ocupando categorias bem definidas: “Soldado Cego”, “Odiador Cego”, “Brutamontes”, “Attac”, “Seguidor”, “Líder”.

Não é acaso o local da mostra em Berlim ser a Washingtonplatz, a praça sul da estação central. Lá, há mais de um ano e meio, o movimento Pegida (sigla em alemão para “Patriotas europeus contra a islamização do Ocidente”) promove suas passeatas de segunda-feira e demais eventos anti-imigração.

Da mesma forma, em Dresden e Potsdam a instalação Os lobos estão de volta ocupou justamente os principais locais de manifestação dos ultradireitistas – dando a ideia de que, nesses palcos públicos, os monstros de metal de Opolka se confrontavam com os de carne e osso.

Mensagem clara

A arte se colocar a serviço da política não é um fenômeno inédito – para o bem ou para o mal. Contudo, ao contrário de um discurso científico, os meios artísticos são, por definição, ambíguos. A mesma combinação de traços e cores pode dizer algo – e o seu contrário; um mesmo grupo de notas musicais pode celebrar a ascensão de um líder – e a sua queda.

Inusitado e corajoso, no caso de Opolka, é ele abrir mão inteiramente dessa impunidade interpretativa – a bendita ambivalência, a “liberdade dos bobos da corte” de que gozam os artistas.

O exército de monstros de ferro e de bronze é, sem dúvida, emocionalmente contundente, até apelativo, e – enquanto arte – segue aberto a interpretações. No entanto, com o complemento do discurso nos cartazes, a mensagem se torna unívoca. O alvo são os que, neste momento, se aproveitam de medos e fraquezas e cultivam o ódio na sociedade alemã, a fim de conquistar mais poder destrutivo; são os de ultradireita, os neonazistas.

“Para que ninguém mais precise odiar”

Os lobos estão de volta fica até o próximo dia 16 de agosto em Berlim, seguindo depois para outras metrópoles alemãs.

Apesar de ousar a clareza política, mais do que acusar ou impor soluções prontas, a instalação visa incitar ao raciocínio próprio – e com sorte, à (re)ação. Entre o poder evocativo dos monstros metálicos e a retórica direta e bem articulada dos textos, abre-se para o visitante um vasto campo para a (auto)reflexão.

Num dos textos centrais da mostra, Opolka indaga: “O que acontece quando as formas da ordem e coesão se esfacelam, e a xenofobia se alastra como um vírus? Quando as regras moral-éticas perdem a validade e a sociedade é cada vez mais marcada por medo, violência e embrutecimento e quando o nacionalismo cego se alastra?”

O artista-ativista insiste: “O que acontece quando o homem se torna o lobo do homem?” – numa paráfrase de um dito romano de mais de 2.200 anos, corroborado sucessivamente por pensadores como Erasmo de Roterdã, Thomas Hobbes, Sigmund Freud.

“O lobo é o lobo do homem”: a Alemanha – leia-se “a Europa”, “o mundo” – terá regredido a esse estágio civilizatório tão primitivo?

Os lobos estão de volta são “minha visão das coisas”, reitera Opolka – visão que, no entanto “só pode ser incompleta”. Assim, ele convida o público a participar, numa parede branca, aberta a ideias, ao fim do percurso da instalação. E conclui, em negrito: “O que podemos fazer, juntos, para criar condições em nosso rico país, sob as quais ninguém mais precise odiar?”

Muito boa pergunta.

Por Augusto Valente

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