Mundo

O Palácio de Westminster vai cair?

Parlamento britânico tem falhas estruturais e deve se mudar por seis anos para evitar colapso

Apoie Siga-nos no

“Há vazamentos nos tetos, a cantaria está podre. Precisamos fazer muito mais para implementar proteções contra incêndio. Os vitorianos nos deixaram um monte de imagens e desenhos de estátuas e tudo o mais, mas não um planejamento realmente bom que nos diga onde estão as falhas.”

Foi assim que o parlamentar veterano e integrante da Casa dos Lordes, Robert James Rogers, um senhor calvo, de espessa barba branca, sobrancelhas apontando ao alto, que agora atende pelo título de Lord Lisvane, descreveu a situação para a BBC, em um dia ensolarado do início de setembro.

Ele havia recém apresentado, junto com outros colegas que formam um comissão bicamaral sobre o assunto, um relatório de 119 páginas detalhando os problemas estruturais do Palácio de Westminster.

“É impossível dizer quando vai acontecer”, diz o documento, “mas há um risco substancial e crescente de que um único evento catastrófico, como um grande incêndio, ou uma sucessão progressiva de falhas em sistemas essenciais façam com o que o parlamento não possa mais ocupar o palácio.”

Além do incêndio, o relatório prevê risco de vazamento de gás e inundação devido à precariedade dos dutos de esgoto.

O risco de colapso estrutural não é imediato, mas se nos próximos anos o prédio de estilo neo-gótico, que ostenta em sua parte norte a torre com o relógio e o sino mais famosos do mundo — o Big Ben — vier abaixo sobre as cabeças de lordes e comuns que ali regem as questões parlamentares do ex-império e atual membro-em-processo-de-divórcio da União Europeia, não terá sido por falta de aviso.

O conjunto de câmaras, tido como a “mãe dos parlamentos”, já sucumbiu no passado.

O corredor de escadarias estreitas que levam até o espaço reservado ao público na câmara dos comuns é ornado com lembranças disso. Quadros com desenhos representando o incêndio de 1832 que destruiu o antigo palácio enfeitam a passagem, escadaria acima.

Mesmo após a reconstrução conduzida pelo arquiteto Charles Barry, que deu ao prédio suas características atuais, o edifício sofreu abalos.

Bombas de Hitler causaram estrago em 14 oportunidades. Em setembro de 1940, uma delas explodiu no pátio, entortando a espada da estátua de Ricardo Coração de Leão.

Em maio do ano seguinte, bombas incendiárias lançadas pelos nazistas por fim destruíram a Casa dos Comuns.

Winston Churchill apoiou a ideia de que a câmara retivesse seu modelo retangular ao ser reconstruída: “Nós modelamos os nossos prédios e, mais tarde, os nossos prédios nos modelam,” proclamou então o herói do vê da vitória e das frases memoráveis.

Por entre os quadros, as janelas abertas em um surpreendente dia escaldante de final de verão mostravam a cena que nenhum inglês gostaria de ver: as entranhas do palácio escondidas dos turistas que se aglomeram lá fora para selfies em frente ao relógio revelam as paredes de pedra trabalhada encardida de fuligem e lodo. Estruturas para andaimes parecem ter sido abandonadas no local.

O corredor dá acesso à seção dos visitantes. A eles é reservado um espaço nos mesmos bancos de madeira trabalhada, que se assemelham aos de igrejas, onde sentam os membros do parlamento, só que localizadas no andar de cima e separadas do restante da câmara por uma grossa parede de vidro.

Os assentos da casa são distinguíveis pelo característico estofado verde — na Câmara dos Lordes, na parte sul do prédio, os estofados são vermelhos e a sala é revestida por ornamentos dourados.

Ordem!

No fim da manhã de 14 de setembro, a secretária de estado para desenvolvimento internacional, Priti Patel, passava por sua primeira sabatina no cargo. Filha de um lojista que fugiu da ditadura de Idi Amin em Uganda, a conservadora defendia, diante do comitê de desenvolvimento internacional da casa, sua política de relocação de recursos para ajuda humanitária que o Reino Unido destina a países em desenvolvimento.

Ela prometia fazer valer os gastos de 0.7% do PIB com o qual o país é comprometido e direcioná-los para programas que estejam em sintonia com a estratégia do governo, o que incluiria a alocação de recursos para o combate ao terrorismo. Preocupado com a ideia, Patrick Grady, do partido nacional escocês (SNP, sigla em inglês), indagou:

“A secretária vai garantir que o ministério da defesa não vai se apropriar do orçamento do seu departamento, que deveria ser destinado para a ajuda às pessoas mais pobres deste mundo?”

“O mundo está mudando e a nossa atitude em relação à ajuda humanitária também deve mudar,” começou Patel, mas sua resposta foi perdendo fôlego e acabou sendo abafada por discussões paralelas entre os membros da casa, levando John Bercow a fazer sua primeira intervenção firme no debate: “Ordem!”, berrou a plenos pulmões, fazendo a sala silenciar por completo.

Grisalho, mas não a ponto de ter a cabeça confundida com as perucas brancas usadas apenas pelos três escriturários sentados à sua frente, Bercow se diferencia dos demais parlamentares por usar uma toga por cima do paletó e ocupar o assento central elevado, à cabeceira da mesa que separa as duas bancadas laterais da casa.

“Estamos debatendo assuntos de extrema importância que afetam algumas das pessoas mais vulneráveis do planeta… Ordem! Esses assuntos realmente merecem uma audiência mais atenta”.

Como “speaker of the house”, ele tem a função de presidir o debate, o que, no âmbito da casa dos comuns, muitas vezes se resume a controlar a baderna e direcionar o bate-boca. Atua como um professor tentando conter adolescentes em uma sala de aula agitada.

Bercow mantém um estilo duro, mas colegial. Não se esquiva de apontar os baderneiros e publicamente envergonhar aqueles cujo comportamento extrapola o nível tolerado — um nível alto, já que debates calorosos e reações espontâneas às falas não só são tolerados como fazem parte do rito.

Mas suas broncas muitas vezes são seguidas por um sorriso de canto de boca, indicando que provavelmente, no fundo e de maneira comedida, ele também é um apreciador da farra.

Algumas intervenções de Bercow se tornaram notórias. Em janeiro de 2013, ao repreender Michael Ellis, um parlamentar que também é juiz de corte, ele interrompeu o debate e encarou o agitador com firmeza. “Mr. Ellis,” disse aos berros, “você não se comportaria desse jeito na corte, então não se comporte desse jeito nesta câmara. Se acalme e fique quieto! Aprenda (a se comportar), cara!”.

Em julho de 2011, a baderna era tamanha que Bercow gritou ordem oito vezes seguidas. Quando finalmente conseguiu acalmar os nobres colegas, apontou para Tim Loughton, na época ministro das crianças do governo de David Cameron, e disparou: “digo ao ministro das crianças, tente se acalmar e se comportar como adulto. Se você não consegue, se isso está acima de você, saia desta câmara, saia fora! Conseguiremos continuar sem você.”

Loughton reagiu e Bercow respondeu: “Não. Isso não é engraçado. Somente na sua cabeça, senhor Loughton, isso é engraçado. Isso não tem nada de engraçado, é vergonhoso”.

Às 11h56 daquela quarta-feira, Bercow acabou por desistir de intervir no burburinho que atrapalhava as respostas de Patel. À sua direita, ele viu passar a comitiva da primeira-ministra, Theresa May, que havia acabado de entrar na sala, seguida por seus ministros de gabinete. Os olhares da plateia se voltaram para a figura rechonchuda de cabelos loiros claros, cuidadosamente despenteados, de Boris Johnson.

Talvez o mais popular entre os conservadores, Boris traiu o governo antecessor, de David Cameron, ao estrelar a campanha para o Reino Unido deixar a União Europeia. Vitorioso no pleito, era o candidato natural para assumir o governo após a renúncia de Cameron até ele mesmo ser apunhalado pelas costas por um companheiro de campanha. Águas passadas.

Naquele momento, Boris chegou com descontração e espremeu-se na bancada, entre os colegas ministros. May, vestido azul e sapatos vermelhos, se acomodou coxa a coxa entre Patel, à sua direita, e o franzino Philip Hammond, seu ministro de finanças, à esquerda.

Dois minutos depois, entrou na câmara o “gabinete sombra”, como é chamada a equipe do principal partido de oposição. Liderada por Jeremy Corbyn, um trabalhista igualmente adorado e odiado por representar abertamente um posicionamento clássico de esquerda — popular junto a um círculo majoritário do partido, mas com forte índice de rejeição perante o eleitorado geral — a turma se posicionou em seu lugar habitual, na primeira fileira à esquerda de Bercow.

O embate se dá rotineiramente às quartas-feiras, quando o líder do governo passa pela sabatina dos membros do parlamento. É notoriamente a sessão mais barulhenta e lotada da casa. Duas linhas vermelhas, uma à frente do time de May e outra à frente do time de Corbyn, servem de limite para até onde os parlamentares podem se posicionar — diz-se que a distância obedece exatamente a comprimento de duas espadas. Enquanto falam, os líderes ficam de pé, em frente a uma caixa de despachos de madeira, posicionada em cima da mesa central.

Theresa May iniciou sua fala às 12:03. Nos 42 minutos seguintes, ela prestou homenagem a Cameron, que havia recentemente renunciado ao seu assento na casa, se esquivou de perguntas sobre o Brexit — “não vou dar nenhuma resposta diferente do que já disse aqui na semana passada” — e falou sobre os percentuais de emprego no país.

Mas foi contra o projeto de reintroduzir as chamadas “grammar schools” (escolas que fazem parte do ensino público, mas só aceitam alunos de alto desempenho escolar) que Corbyn depositou toda a sua carga.

O líder da oposição carregou sua arma de ironia e disparou em direção a May: “Gostaria de congratular a primeira-ministra. Ela estabeleceu união entre a Ofsted (agência responsável pela fiscalização de escolas) e os sindicatos de professores.

Ela realmente introduziu uma nova era de união ao pensamento de educação. Queria saber se ela conseguiria, nesta manhã, dentro dos limites desta silenciosa casa, dar o nome de qualquer especialista em educação que apoie as propostas dela para novas escolas seletivas”.

May defendeu o resultado das políticas de educação introduzidas pelo governo Cameron às quais Corbyn se opôs, mas, ao ser lembrada pelo oponente de que não conseguiu referir um especialista em apoio ao seu projeto, a primeira-ministra partiu para o ataque ideológico.

“O honorável cavalheiro precisa tirar a sua cabeça dos anos 1950… Ele acredita em igualdade de resultado; eu acredito em igualdade de oportunidade. Ele acredita em nivelar por baixo. Eu acredito em nivelar por cima!”.

Corbyn não baixou a guarda: “Igualdade de oportunidade não é segregar crianças de 11 anos de idade”. A conservadora apresentou mais argumentos e provocou: “Gentilmente, lembro o honorário cavalheiro de que ele estudou em uma grammar school e eu estudei em uma grammar school e foi isso o que nos trouxe até aqui hoje — mas o meu lado deve estar mais feliz do que o dele”.

Corbyn proferiu então uma declaração de Cameron, contrário à política de educação seguida por May: “Eu gostaria que o partido conservador superasse essa atitude (de insistir no retorno das grammar schools),” citou. A primeira-ministra não cedeu e, dedo em riste e fala pausada, avançou com um ataque pessoal:

“Reconheço que essa pode bem ser a última vez que o honrável cavalheiro tem a oportunidade de me enfrentar por meio dessa caixa de despachos”, disse, em alusão à eleição interna que o adversário enfrentaria na próxima semana movida por co-partidários insatisfeitos com sua liderança (Corbyn venceu o pleito).

May continuou o ataque até que Bercow interrompeu afirmando que o andamento dos trabalhos estava “absurdamente lerdo” naquele dia e passou a palavra aos demais parlamentares listados para dirigirem perguntas à primeira-ministra. May respondeu um a um e às 12:45, juntou suas folhas e pastas e deixou a sala, junto com seu gabinete.

O Palácio de Westminster está ruindo. A proposta de reforma apresentada pelo relatório do Lord Lisvane prevê um gasto de 4 bilhões de libras na restauração. Se o projeto for posto em prática, os parlamentares — lordes e comuns — terão de se mudar por seis anos até que o prédio renovado seja devolvido. Ainda assim, isso só deve acontecer a partir de 2020.

Naquela quarta-feira, terceira sabatina da era May, tudo parecia em ordem sob a batuta de Bercow. O debate foi quente, mas não houve incêndio. Até o sistema de esgotos, precário, funcionou normalmente.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo