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“Durante a noite, ouvíamos bombardeios e a TV nos convocava às ruas”

De Istambul, cidadã turca conta detalhes de madrugada assustadora e de como a tentativa de golpe foi diferente de outras ocorridas na Turquia

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De Istambul

Sou uma cidadã turca e ,mesmo sendo de uma minoria bastante negligenciada no país, morei grande parte da minha infância em Istanbul, voltando pelo menos uma vez por ano para cá desde que me mudei para o exterior.

Me lembro de uma cidade onde vivíamos com medo de explosões de bomba, na qual pensávamos várias vezes quais opiniões iríamos emitir, e para quem, e onde dizer sua opinião poderia te colocar na prisão.

Nos últimos anos, eu tinha esperanças de que os tempos estavam mudando, sentia o cheiro de uma nova época, mais liberal e menos violenta na Turquia. Infelizmente, estava enganada. Não por causa do ataque de duas semanas atrás no aeroporto de Ataturk, quando minha mãe estava dentro do aeroporto, e nem pelo golpe e as violências que o seguiram na madrugada deste sábado 16.

Falo isso por causa da crescente divisão na sociedade turca acerca da política do país, e especialmente acerca de quem a comanda, o presidente Recep Tayyip Erdogan.

Mesmo com a tensão no ar existente, o golpe de estado veio do nada. Estou na Turquia há uma semana e não foi possível antever este acontecimento; não houve nenhuma situação ou comportamento estranho das pessoas.

Mas, para isso, acho relevante um entendimento do contexto da Turquia. A república turca foi fundada em 1923 por Kemal Ataturk, o grande herói da pátria, que defendia o nacionalismo e o secularismo, e supostamente a democracia. O movimento a favor desses ideias se chama kemalismo e os militares se veem como os guardiões desses ideais.

Desde 1960, os militares realizaram quatro golpes de Estado (o último em 1997), sempre dizendo proteger a Turquia do caos, do islamismo crescente e tentando manter a democracia. Mesmo com esse histórico de golpes, a Turquia sempre voltou a ter democracia – em várias formas, maneiras e graus diversos.

Erdogan, fundador e líder do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento, criado em 2001), é visto como uma ameaça à democracia, ao estado laico e à liberdade de imprensa, entre outras pautas. Com as políticas recentes de Erdogan, os militares que se opuseram tiveram processos abertos contra eles ou foram presos. O resto se manteve suspeitosamente quieto, o que me levava a acreditar que eles estavam acovardados.

Por isso, na noite de sexta-feira 15, quando uma parte dos militares tentaram instaurar mais um golpe de estado, isto veio como uma grande surpresa. Uma de muitas nesses recentes acontecimentos. Conversando com pessoas que viveram os outros golpes, percebi que este é bem diferente dos outros em vários aspectos, inclusive o timing dos acontecimentos que irei relatar a seguir. 

Na noite de sexta-feira, comecei a suspeitar de algo estranho quando uma amiga me disse que as pontes sobre o Bósforo foram fechadas por tanques militares. Sabia que a Turquia estava com medo de outro ataque terrorista, mas para chegar ao ponto de por os militares na rua, tinha de existir outra razão.

Então, começaram as notícias sobre os tanques nas ruas e comecei a ouvir aviões e helicópteros sobrevoando a cidade. Assim que pude, fui a um café que tinha tevê ao vivo e Erdogan já estava falando na mídia local. Vale notar que os “golpistas” ainda não tinham se manifestado.

No seu discurso, Erdogan chamou a população para ir às ruas defender a democracia (ou seja, seu mandato democraticamente eleito) e usou o discurso de medo como sua principal estratégia de comunicação. Ele dizia que, se os militares assumissem, haveria toque de recolher, os bancos seriam bloqueados e teríamos outros retrocessos, sempre remetendo às piores memórias dos golpes passados.

A esta altura, as mídias sociais já não estavam funcionando e as únicas informações que tínhamos eram da mídia local, que estava claramente demonstrando apoio a Erdogan e também chamando a população às ruas. Isso não surpreende mais ninguém, pois Erdogan controla toda a mídia.

O presidente terminou seu discurso enfatizando que está junto com o povo e com a democracia, e que os traidores da pátria não vencerão. Algo que me surpreendeu nesses acontecimentos foi que o povo foi em massa para às ruas, mostrando a popularidade do Erdogan.

Nesse ponto, já era 1 da manhã e comecei a andar de volta para casa. Em todo o caminho, via pessoas fazendo filas, gigantescas, em bancos automáticos para sacar dinheiro pois tinham medo do novo governo bloquear suas contas, como tinha acontecido no passado. Além disso, várias pessoas, inclusive conhecidos e familiares, estavam lotando os bakkal, pequenos supermercados abertos até mais tarde, para comprar suprimentos básicos caso a história do toque de recolher fosse verdade.

No caminho, muitas histórias e relatos conflitantes, opiniões diversas e pessoas discutindo sobre os acontecimentos. Até as mesquitas tinham chamados para defender a democracia indo para as ruas.

Cheguei em casa e Erdogan estava novamente na tevê, dessa vez falando por Facetime. Após sua fala, a tevê mostrou uma mulher que já estava nas ruas protestando contra o golpe dizendo que tinha pessoas de todos os partidos junto com ela. Ela convocava mais gente para ir à manifestação e dizia que não importava a opinião política ou o partido para defender o pais.

Durante toda a noite, ouvíamos helicópteros e aviões militares sobrevoando, bombardeios, e a tevê continuando a nos convocar para as ruas. 

As 6 da manha, decidi dormir e acordei com um novo discurso do Erdogan. Nessa fala, ele afirmou que os que tentaram fazer o golpe são uma ameaça pior que o PKK (a guerrilha separatista curda proclamada terrorista por vários paises incluindo os EUA) e que o terrorismo islâmico. Assim, disse Erdogan, o povo tem de se unir e continuar se manifestando contra o golpe e a favor da democracia.

Durante todos os acontecimentos, fiquei me perguntando: qual democracia? Nunca vi a palavra democracia ser tao mal entendida e usada tantas vezes em vão, por ambos os lados.

Ate agora, início da tarde em Istambul, seguem vários relatos conflitantes: alguns dizem que o golpe foi organizado pelo próprio Erdogan para ele consolidar seu poder, outros dizem que foi pelos grandes atores internacionais, inclusive os Estados Unidos, e outros que anteriormente não apoiavam Erdogan agora o apoiam, pois o veem como um grande sofredor de injustiças. 

Vamos ver o que vai acontecer, mas uma coisa é certa: Erdogan emergirá disso com mais poder ainda.    

*Romina Genovesi é cidadã italiana e turca, formada pela London School of Economics

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