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Cruzadas, novamente

Aqueles que não têm coragem de criticar as suas próprias tradições fariam melhor se silenciassem sobre as tradições dos outros

Manifestantes protestam com uma bandeira da Al-Qaeda em um protesto em Benghazi, na Líbia, em 14 de setembro. Foto: AFP
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As cenas dos ataques de salafistas às embaixadas norte-americanas levantam alguns pontos maiores sobre aquilo que poderíamos chamar de “a questão árabe”.

Primeiro, há de se dizer claramente que a atuação dos salafistas é medonha sob todos os aspectos. Depois da Primavera Árabe, esse grupo sunita começou paulatinamente a atuar em países como Tunísia, Egito e Líbia com vistas à afirmação de uma sociedade radicalmente moldada em uma leitura “rigorosista” de preceitos religiosos muçulmanos. Leitura que boa parte dos próprios muçulmanos vê como no limite do delirante. Por meio da invasão de universidades, queima de cinemas, bloqueio de exposições, eles elegeram a cultura o campo de batalha preferencial. Sociedades muçulmanas laicas como a tunisiana veem nos salafistas um risco de regressão social. Pois eles sabem como os salafistas se aproveitam de um sentimento profundo de exclusão e preconceito para transformar isso em raiva antiocidental.

Nesse sentido, é importante lembrar que a briga entre os salafistas e o Ocidente é, na verdade, um desdobramento de um conflito no interior da própria religião muçulmana e dos países árabes. Tal como os cristãos, os muçulmanos não têm unidade alguma. Tal como os cristãos, eles se dividem, muitas vezes de maneira antagônica, a respeito da interpretação dos preceitos de seu livro sagrado. Boa parte dos costumes que acreditamos serem obrigações muçulmanas, como o uso de burca e a extração do clitóris, não tem base alguma no Alcorão. Tudo isso tende a ser negligenciado quando vemos as cenas brutais das embaixadas em chamas.

Aqui, vale a pena uma reflexão tendo em vista a revisão de certas escolhas geopolíticas dos países ocidentais. Os salafistas atuam hoje dessa forma por se sentirem fortes diante de seu crescimento real em várias nações árabes. Tal crescimento, cujas causas devem ser estudadas com calma e que misturam problemas socioeconômicos e demandas de segurança, tem sido financiado, em larga medida, por países como a Arábia Saudita. Bastião de uma sociedade teocrática, sede de uma monarquia absoluta medieval que faz o Irã parecer uma democracia escandinava, a Arábia tem sido generosa na subvenção desses grupos que agora resolvem queimar embaixadas. Ou seja, a primeira coisa que os países ocidentais deviam fazer é rever suas relações preferenciais com os sauditas.

Por outro lado, há de se fazer uma reflexão a respeito do filme que serviu de estopim para tais ações. Permitir um filme dessa natureza, onde seu realizador afirma querer mostrar como o islamismo é um câncer, nada tem a ver com liberdade de expressão. Pois nunca a liberdade de expressão significou poder falar qualquer coisa de qualquer forma. Em toda situação democrática, há afirmações não permitidas. Por exemplo, se alguém fizer um filme a fim de mostrar que os gays são seres promíscuos responsáveis pelo mal moral do mundo, que os negros são seres inferiores ou que os judeus estão por trás da crise econômica, que controlam tudo e que inventaram o Holocausto, tal indivíduo será, com razão, enquadrado em crime penal previsto por lei e a exibição do seu filme será proibida. A razão é simples: não se trata de uma questão de opinião, mas de preconceito e simples violência social. Se há algo que a democracia reconhece é o fato de que nem toda enunciação é uma opinião. Há enunciações que, por causa de sua violência e preconceito, são crimes.

É claro que temos o direito de criticar dogmas religiosos. Não se segue daí, porém, que se possa fazer isso de qualquer forma. Posso criticar o dogma católico da transubstanciação, mas não significa que eu possa entrar na missa e cuspir na hóstia. Da mesma forma, posso criticar, em minha aula, o Estado brasileiro afirmando que sua bandeira é hoje um pano velho sem sentido. Mas não se segue daí que eu possa entrar em sala e atear fogo à bandeira. Saber encontrar a forma adequada de crítica é o mínimo que se pode esperar no século XXI.

Por fim, normalmente há aqueles que afirmam que, se assim fosse, teríamos de proibir Voltaire e seus textos anticlericais. Contra esses, gostaria de lembrar um ponto: Voltaire era corajoso o suficiente para criticar sua própria tradição religiosa. Algo muito diferente é fazer profissão de fé esclarecida, ridicularizando as crenças religiosas de outros povos. Aqueles que não têm coragem de criticar sua própria tradição melhor fariam se silenciassem sobre as tradições do outro.

As cenas dos ataques de salafistas às embaixadas norte-americanas levantam alguns pontos maiores sobre aquilo que poderíamos chamar de “a questão árabe”.

Primeiro, há de se dizer claramente que a atuação dos salafistas é medonha sob todos os aspectos. Depois da Primavera Árabe, esse grupo sunita começou paulatinamente a atuar em países como Tunísia, Egito e Líbia com vistas à afirmação de uma sociedade radicalmente moldada em uma leitura “rigorosista” de preceitos religiosos muçulmanos. Leitura que boa parte dos próprios muçulmanos vê como no limite do delirante. Por meio da invasão de universidades, queima de cinemas, bloqueio de exposições, eles elegeram a cultura o campo de batalha preferencial. Sociedades muçulmanas laicas como a tunisiana veem nos salafistas um risco de regressão social. Pois eles sabem como os salafistas se aproveitam de um sentimento profundo de exclusão e preconceito para transformar isso em raiva antiocidental.

Nesse sentido, é importante lembrar que a briga entre os salafistas e o Ocidente é, na verdade, um desdobramento de um conflito no interior da própria religião muçulmana e dos países árabes. Tal como os cristãos, os muçulmanos não têm unidade alguma. Tal como os cristãos, eles se dividem, muitas vezes de maneira antagônica, a respeito da interpretação dos preceitos de seu livro sagrado. Boa parte dos costumes que acreditamos serem obrigações muçulmanas, como o uso de burca e a extração do clitóris, não tem base alguma no Alcorão. Tudo isso tende a ser negligenciado quando vemos as cenas brutais das embaixadas em chamas.

Aqui, vale a pena uma reflexão tendo em vista a revisão de certas escolhas geopolíticas dos países ocidentais. Os salafistas atuam hoje dessa forma por se sentirem fortes diante de seu crescimento real em várias nações árabes. Tal crescimento, cujas causas devem ser estudadas com calma e que misturam problemas socioeconômicos e demandas de segurança, tem sido financiado, em larga medida, por países como a Arábia Saudita. Bastião de uma sociedade teocrática, sede de uma monarquia absoluta medieval que faz o Irã parecer uma democracia escandinava, a Arábia tem sido generosa na subvenção desses grupos que agora resolvem queimar embaixadas. Ou seja, a primeira coisa que os países ocidentais deviam fazer é rever suas relações preferenciais com os sauditas.

Por outro lado, há de se fazer uma reflexão a respeito do filme que serviu de estopim para tais ações. Permitir um filme dessa natureza, onde seu realizador afirma querer mostrar como o islamismo é um câncer, nada tem a ver com liberdade de expressão. Pois nunca a liberdade de expressão significou poder falar qualquer coisa de qualquer forma. Em toda situação democrática, há afirmações não permitidas. Por exemplo, se alguém fizer um filme a fim de mostrar que os gays são seres promíscuos responsáveis pelo mal moral do mundo, que os negros são seres inferiores ou que os judeus estão por trás da crise econômica, que controlam tudo e que inventaram o Holocausto, tal indivíduo será, com razão, enquadrado em crime penal previsto por lei e a exibição do seu filme será proibida. A razão é simples: não se trata de uma questão de opinião, mas de preconceito e simples violência social. Se há algo que a democracia reconhece é o fato de que nem toda enunciação é uma opinião. Há enunciações que, por causa de sua violência e preconceito, são crimes.

É claro que temos o direito de criticar dogmas religiosos. Não se segue daí, porém, que se possa fazer isso de qualquer forma. Posso criticar o dogma católico da transubstanciação, mas não significa que eu possa entrar na missa e cuspir na hóstia. Da mesma forma, posso criticar, em minha aula, o Estado brasileiro afirmando que sua bandeira é hoje um pano velho sem sentido. Mas não se segue daí que eu possa entrar em sala e atear fogo à bandeira. Saber encontrar a forma adequada de crítica é o mínimo que se pode esperar no século XXI.

Por fim, normalmente há aqueles que afirmam que, se assim fosse, teríamos de proibir Voltaire e seus textos anticlericais. Contra esses, gostaria de lembrar um ponto: Voltaire era corajoso o suficiente para criticar sua própria tradição religiosa. Algo muito diferente é fazer profissão de fé esclarecida, ridicularizando as crenças religiosas de outros povos. Aqueles que não têm coragem de criticar sua própria tradição melhor fariam se silenciassem sobre as tradições do outro.

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