Humor

Coronel Siqueira: a direita toma as ruas

Como se diz, o melhor da festa é a expectativa, e quando nosso desejo se cumpriu, nosso ódio deu lugar a um vazio meio estranho…

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Como vocês sabem, na última década a direita descobriu o como é bom se manifestar. Desde 2013 estamos nas ruas dando um verdadeiro show de ousadia e descontração patriótica! Foram tantos momentos — Fora Dilma, Fora STF, Fora PT… Qualquer sombra de democracia e bom senso era a senha para que nos juntássemos alegremente para destilar todo nosso ódio e frustração.

Como era divertido… Era quase como uma segunda adolescência para quem estava ali… O dia já começava cedo e cheio de excitação… Hora de tirar a camisa verde-amarela do armário, decorar alguma faixa com um pedido extremo, pintar o rosto da forma mais rocambolesca possível com as cores da bandeira e ir para as ruas. Os grupos de zap já começavam a ferver no dia anterior e a expectativa tomava conta de nossos corpos… Aquele calor, aquela inquietação patriótica gostosa que só quem já sentiu sabe o que é.

A manifestação em si era puro júbilo: podíamos sem culpa externar todos nossos desejos mais inconfessáveis. Coisas que nem o divã escutou podiam ser ditas abertamente, num grito primal coletivo! Sem limites, sem censura, apenas a voz do cidadão de bem em coro. Nada era proibido – machismo, homofobia, classismo, racismo! Milhares de vidas frustradas gritadas numa só voz!

Fora PT, eu quero meu Brasil de volta — ainda que seja o Brasil de 1700.

Confesso que com a concretização de nossos sonhos (a queda da Dilma) algo se perdeu. Como se diz por aí, o melhor da festa é a expectativa, e quando nosso desejo se cumpriu, nosso ódio irracional deu lugar a um vazio meio estranho… Agora Temer era o presidente, e manifestação a favor não tem o mesmo gosto.

Mas seguíamos a vida… Um “Fora STF” aqui, um “Lula Preso” ali, sempre era possível achar uma brechinha no nosso idílio tropical para reclamar de algum sopro de iluminismo que insistia em entrar pelas frestas. Se é pelas rachaduras que a luz entra, nossa função era tampar todas.

A chama voltou na eleição de Bolsonaro. Ali foi possível voltar ao ódio puro, ódio raiz, ódio de várzea. Mais uma vez não havia fronteiras: A esquerda era nossa inimiga e devia ser combatida – se possível, fisicamente. Se ainda existiam limites, agora tudo era liberado: Ditadura, tortura, assassinato, a gente podia pedir tudo em voz alta sem medo de críticas. Finalmente tínhamos uma liderança que nos permitia mostrar nosso lado mais bestial, brutal e desumano. Os jornais, como na época da Dilma, davam apoio, sem críticas – “grande manifestação”, “o povo cansou”, “manifestações democráticas gigantescas”. Era assim que eles nos chamavam. Chique demais!

Com a vitória do grande führer tupiniquim, mais uma vez a chama diminuiu. Odiar é sempre mais excitante que amar, mas seguimos em frente. Uma manifestaçãozinha aqui, outra ali, pela cloroquina, pelas armas, contra a vacina… Nada muito incrível.

Recentemente, tivemos as manifestações pelo aniversário da Gloriosa Revolução de 64 (quando o exército, com medo de um golpe, deu um golpe) e, neste domingo, a Marcha da Família Cristã pela Liberdade.

No dia da manifestação, o zap já não apitou mais como outrora… O povo já não parecia tão animado… Mas o presidente pediu pra protestar, e ordem dada é ordem cumprida. Acordei cedo, tomei meu banho com sais de cloroquina, apliquei meu ozônio retal, coloquei minha camiseta da seleção que esconde a barriga e fui pra rua com minha faixa onde se lia “Quero ter Menos Direitos!”.

Esperei entre o meio dia e as três da tarde sozinho com minha faixinha, sob o sol escaldante. Não apareceu mais ninguém. Já cansado, vi um ônibus parando. Fiquei todo contente. Mas o ônibus parou, o motorista jogou uma casca de laranja em mim e gritou:

— Deixa de ser ridículo, Siqueira. Vai pra casa, imbecil. Para de apoiar assassino!

Fechou a porta e seguiu em frente.

Guardei minha faixinha e voltei para casa, cabisbaixo… Eu entendo as pessoas estarem insatisfeitas com o governo — a saúde está um caos, a economia não existe, o desemprego explodiu, os militares só fazem lambança e tudo mais… Mas o que importa realmente é que tiramos o PT e estamos combatendo o fantasma do comunismo!

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