Glenn Greenwald

Esquerda e crime violento

Entre o populismo penal e o impulso de tapar o sol com a peneira, o campo progressista precisa de um vocabulário para falar de violência

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No fim de 2019, fui agredido pateticamente por Augusto Nunes durante um programa de rádio. Ainda que essa agressão tenha merecido uma extensa cobertura da mídia, considero muito mais significativa a experiência que vivi na véspera, que carrego comigo até hoje e exerce forte influência sobre meu modo de pensar política, tanto no Brasil quanto nos EUA.

Foi em um evento sobre jornalismo realizado na USP. Dividindo a mesa comigo estava uma professora da universidade. Mulher negra de esquerda, ela cresceu em uma das maiores favelas da cidade. Ela me contou uma história envolvendo seu irmão mais novo, que havia sido assaltado à mão armada duas vezes nos seis meses anteriores. Ambas as vezes ele esperava o ônibus, antes do nascer do sol, para sua habitual viagem de horas até o trabalho. Nas duas ocasiões teve roubado o celular que havia comprado a duras penas, e, em uma delas, levaram até seus tênis. “Bolsonaro promete matar os bandidos que fazem isso”, afirmou ela. “O que a esquerda tem a dizer a uma pessoa como meu irmão?” A plateia ficou silenciosa. Não creio que alguém tivesse uma resposta. Eu não tinha.

Ela não estava, é óbvio, elogiando Bolsonaro – nem no geral, nem pela sua promessa autoritária, ao estilo Rodrigo Duterte, de “matar bandidos”. Ela também não estava desconsiderando as injustiças estruturais que dificultam o sucesso eleitoral da esquerda. Em vez disso, ela conclamava a esquerda a encarar a realidade da vida dos brasileiros, o medo que o crime e a violência despertam e a razão pela qual uma retórica anticrime autoritária desperta simpatia. Estava, em essência, desafiando a esquerda a reconhecer o porquê de os brasileiros estarem tão assustados. Só com esse reconhecimento a esquerda poderá convencer a população de que o seu projeto melhoraria a vida de todos: não em teoria, mas na prática.

Recentemente, vivi visceralmente as lições oferecidas por essa professora. Em 5 de março, véspera do meu aniversário, estava no sítio no interior do Rio de Janeiro que aluguei com minha família durante a quarentena. Como meus dois filhos tinham provas escolares que exigiam uma internet mais rápida, eles voltaram para o Rio com meu marido. O plano era retornar ao sítio naquela noite para o meu aniversário, mas, felizmente, no último minuto adiaram para a manhã seguinte.

Essa decisão evitou que meus filhos fossem expostos ao que teria sido uma experiência profundamente traumatizante.

Por volta das 21 horas daquela noite, cinco homens armados invadiram o sítio. Dois deles renderam o segurança armado que trabalha com a nossa família, enquanto três apontavam suas armas para mim e me mandaram entrar em uma pequena estrutura na frente do sítio.

Como vínhamos recebendo mais ameaças de morte do que de costume, fiquei estranhamente aliviado quando eles começaram a exigir dinheiro. Como tínhamos pouca coisa de valor no sítio, os assaltantes achavam que estávamos escondendo dinheiro, o que aumentava a sua raiva.

Tudo durou uma hora. O tempo todo, o segurança foi forçado a ficar deitado no chão, com uma arma apontada para sua cabeça e ouvindo ameaças repetidas. A certa altura, me mandaram abrir a boca, onde enfiaram uma arma e exigiram saber onde estava o “dinheiro escondido”. Chutaram o segurança tantas vezes que ele teve as costelas quebradas. Quando finalmente decidiram ir embora, nos mandaram para um quarto nos fundos do sítio, onde fomos trancados e amarrados. O segurança, compreensivelmente, está de licença do seu trabalho na polícia desde então.

Hesitei em escrever sobre isso. Jornalistas não devem ser protagonistas das histórias que contam. Mas decidi contá-la depois de ler sobre uma família de imigrantes vietnamitas na Califórnia que sofreu uma experiência similar, mas pior. Pior porque a filha do casal, de 7 anos, estava presente e foi ameaçada repetidamente pelos invasores. Quando vi uma entrevista da filha explicando que ela não conseguia dormir por medo que eles voltassem, decidi usar minha plataforma para promover uma campanha em favor da família, mas também para discutir a experiência visceral do crime violento.

A esquerda tem propostas para a epidemia de crimes no Brasil: reduzir a pobreza reduzirá o crime, mais dinheiro para treinamento policial, inteligência e cuidados de saúde mental reduzirão as mortes indiscriminadas, punições maiores para abusos por parte da polícia ajudarão. Mas, como aquela professora observou com tanta perspicácia, essas soluções não atingem de forma visceral o crime violento. O medo de ser morto supera as faculdades racionais e afoga os conceitos abstratos de justiça social. O crime violento nos afeta diretamente na alma, e sem entender isso a esquerda seguirá refém da demagogia punitivista da direita.

Publicado na edição nº 1152 de CartaCapital, em 8 de abril de 2021.

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