Esporte

O futebol anti-Brexit da Inglaterra domina o mundo

Os times ingleses triunfam na Europa. Com jogadores, técnicos e proprietários não ingleses
por nirlando beirão

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O categórico sucesso dos times da Inglaterra nas competições europeias propõe um paradoxo: enquanto o país da Rainha volta politicamente a buscar o orgulho de seu isolamento insular, seus vitoriosos templos da bola nunca foram tão cosmopolitas e abertos ao mundo.

Liverpool e Tottenham, que disputarão a final da Champions League no dia 1o de junho, em Madri, assim como Arsenal e Chelsea, que se enfrentam dia 29 pelo troféu da Europa League, em Baku, no Azerbaijão, são exemplos de um sincretismo raro mesmo em tempos de globalização. É a primeira vez que os dois principais torneios europeus têm finalistas de um só país.

Se o Brexit, o rompimento com a Europa, viesse a se estender aos gramados, a Inglaterra cairia, no futebol, para uma liga bem inferior.

“A estrutura, as condições de trabalho e o padrão de profissionalismo são 100% ingleses”, reconhece Maurizio Sarri, 60 anos, treinador do Chelsea. Mas esses fatores, só eles, sabe-se, não marcam gols e ganham troféus. Sarri é italiano de Nápoles e foi do esquadrão da cidade – o qual chegou, com Sarri, a ameaçar a longeva hegemonia da Juventus – que ele saiu para assumir a direção técnica dos Blues do Sul de Londres.

Até o próprio Lucas duvidou do que fez contra o Ajax (foto: Emmanuel Dunand/AFP)

Foi uma temporada acidentada, esta de 2018-2019, o Chelsea perdeu fôlego logo de cara, passou por certos vexames, Sarri esteve para ser demitido, mas, com a graça de San Gennaro e de Eden Hazard, conseguiu classificar os Blues para a próxima Champions League.

Os outros três treinadores que estão na berlinda continental tiveram, todos eles, de atravessar o Canal para consolidar seu prestígio – sem falar do catalão Pep Guardiola, bicampeão da Premier League com o Manchester City, título assegurado numa emocionante última rodada. Os comentaristas nativos são os primeiros a reconhecer que o sucesso das equipes da ilha começa à beira do gramado. A Inglaterra importa técnicos de futebol; o Brasil xenófobo e provinciano, quando raramente os recruta, logo os descarta. O argentino Jorge Sampaoli, do Santos, que se cuide.

Jürgen Klopp, 51 anos, do Liverpool, é o mais carismático deles. Contrariando o que se espera de um alemão, é cérebro, mas também coração, incendeia jogadores e torcedores sem o uso de palavrões ou lugares-comuns. Veio do Borussia Dortmund, em 2015, depois de colher na Alemanha dois campeonatos da Bundesliga e outros três troféus. É um voraz leitor de livros de História e, embora seja discreto em relação à política, já expressou publicamente: “A certeza que tenho é que nunca votaria na direita”.

Jürgen Klopp. (Foto: Paul Ellisa/AFP)

No ano passado, o grande desafio com que “The Normal One” (apelido que ele próprio se atribuiu para ironizar “The Special One” José Mourinho) deparou veio a ser frustrado por uma derrota de 3 a 1 na final da Champions League contra o Real Madrid de Cristiano Ronaldo e do técnico Zinedine Zidane. Este ano, a missão se reapresenta, agora contra a Tottenham. Credenciais é que não faltam à equipe de Klopp. O Liverpool manteve um páreo cabeça a cabeça com o Manchester City, perdeu o campeonato por um ponto e os 97 pontos que acumulou em 38 rodadas (30 vitórias, sete empates e uma derrota) seriam mais do que suficientes para o título em qualquer season.

Para chegar à final da Champions, o Liverpool escreveu uma dessas epopeias das quais o torcedor não há de esquecer nem em cem anos. Perdera a primeira partida da semifinal para o inabalável Barcelona de Messi, Luisito Suárez, Piqué & Cia, no Camp Nou, por 3 a 0. A diferença de gols parecia insuperável. Com uma agravante: o craque do time, lesionado, ficaria de fora da segunda partida, no Anfield Stadium.

O egípcio Mohammed Salah assistiu, da arquibancada, a proeza dos Reds envergando uma camiseta que antecipava o ânimo da equipe: “Never give up” (Nunca desista). O Liverpool de Klopp não desistiu e acachapou o Barça: 4 a 0.

Foi também com o coração na boca que se candidatou para a final da Champions o Tottenham do técnico Mauricio Pochettino. Argentino, 47 anos, Pochettino foi zagueiro de qualidade, chegou à seleção, jogou a Copa do Mundo de 2002 e a Copa América de 1999, vencida pelo Brasil – quando tal coisa ainda acontecia. Antes de virar treinador dos Spurs, em 2014, passou pelo Espanyol de Barcelona e, já do lado de cá da Mancha, pelo Southampton.

Mauricio Pochettino. (Foto: John Thys/AFP)

O Tottenham é uma agremiação especial, de tradição antifascista, sua torcida se orgulha de ser The Yid Army, transformando a palavra que pejorativamente designava os judeus – yid – num grito de resistência e tolerância. Pochettino chegou no momento difícil dos Spurs, sem títulos e sem teto. Teve de mandar suas partidas em Wembley, nesta temporada.

Os milagreiros vêm de fora, mas a Ilha fornece a base para as façanhas

Chegar à final da Champions, especialmente naquelas circunstâncias, é mais que um consolo. A equipe perdeu a primeira partida da semifinal por 1 a 0 em Londres e a reviravolta pareceu mais improvável ainda depois que a jovem e talentosa esquadra do Ajax abriu 2 a 0, jogando em casa. Pochettino apostara no esbaforido Lucas, com passagem medíocre pelo Paris St.-Germain, para substituir Kane, o craque cool. Lucas fez no segundo tempo os três gols nos quais nem o treinador dava mostras de acreditar.

Unai Emery, basco de 47 anos, chegou à Ilha em 2018 refugiando-se de uma tragédia. Treinador do estrelado Paris de Neymar, Cavani e Di María, depois de criar fama em Sevilha, ele viu a equipe francesa ser arrasada pelo Barcelona por um improvável 6 a 1 e ser eliminada da Champions, apesar da vantagem pretensamente insuperável dos 4 a 0 da partida em Paris.

Alcançar a finalíssima da Europa League, com duas vitórias sobre o Valencia, placar agregado de 7 a 3, pode dar a impressão de ter sido mais fácil, para Emery, do que as pedreiras enfrentadas na sua primeira temporada na Premier League com o Arsenal. Os Gunners do Norte de Londres terminaram em quinto lugar. Dificuldade maior ainda para o técnico basco é fugir da sombra do francês Arsène Wengler, que dirigiu o Arsenal por 22 memoráveis anos.

Os estrategistas. O catalão Pep Guardiola festeja, acima, o acirrado bi do Manchester City. (Foto: Glyn Kirk/AFP)

Assim como acontece à beira do gramado, dentro dele a predominância de craques não ingleses é escandalosa, em especial nos clubes que têm mais dinheiro para gastar no mercado da bola. No entanto, o futebol da Inglaterra tem se beneficiado do efeito contágio. Uma copiosa safra de jovens talentos brotou: o serelepe Sterling, do City, o atacante Dele Ali, do Tottenham, os laterais Alexander-Arnold e Andy Robertson, do Liverpool, brilharam na temporada e têm ajudado o English Team, de duvidosa reputação, a fazer bonito nas Eliminatórias da Copa da Europa.

Os donos da bola:  um xeque, um russo, magnatas dos EUA e, ah, um fundo inglês

O dinheiro que irriga todas essas proezas é igualmente poliglota. Desde que o magnata russo Roman Abramovich desembarcou no Chelsea, em 2003, os portos da Ilha se abriram para outros investidores d’além-mar. O bicampeão Manchester City é, desde 2008, propriedade de um bilionário dos Emirados Árabes, o xeque Mansour bin Zayed Al Nahyan. O Arsenal é agora 100% do magnata americano Stanley Kroenke, que arrematou em 2018 os 30% do seu sócio russo Alisher Usmanov. O Fenway Sports, grupo americano que gere o Boston Red Sox no beisebol, virou dono do Liverpool em 2010. O Tottenham, enfim, é a exceção: quem o administra é um bilionário fundo de investimento que fala o escorreito inglês da Rainha. 

Time a time

Liverpool

No time que entrou para a partida decisiva contra o Barcelona estavam ausentes, por lesão, o ídolo Mo Salah, atacante egípcio, e Roberto Firmino, centroavante brasileiro. Em campo havia dois brasileiros (o goleiro Allison e o volante Fabinho), um alemão de origem camaronesa, um holandês, um belga, um kosovar, um senegalês e, excepcionalmente, quatro ingleses.No banco, um holandês, um belga, um croata, um galês e três ingleses.

Manchester City

A escalação básica do campeão inglês de 2018-2019 começava pelo goleiro brasileiro Eberson, tinha outro brasileiro titular, o volante Fernandinho, e dois reservas, o lateral Danilo e o centroavante Gabriel Jesus. O resto do elenco: um chileno, um português, um espanhol, um holandês, um montenegrino, um ucraniano, um argelino, dois argentinos, dois belgas, dois franceses, dois alemães e cinco ingleses, entre eles o craque Raheem Sterling, nascido na Jamaica.

Tottenham

Na jornada épica da Johan Cruyff Arena de Amsterdã, começaram a partida dois franceses, um queniano, dois belgas, um dinamarquês, um sul-coreano, três ingleses e um brasileiro (o atacante Lucas Moura, que entrou com a responsabilidade de substituir o craque dos Spurs, o inglês Harry Kane, contundido, e virou o herói do jogo). No banco, três argentinos, um espanhol e três ingleses.

Chelsea

Na complicada disputa contra o Eintracht Frankfurt, só decidida nos pênaltis, o onze de Maurizio Sarri entrou com dois espanhóis, um croata, um belga, um dinamarquês, um francês, dois brasileiros naturalizados italianos, um único inglês e dois brasileiros (o zagueiro David Luiz e o atacante Willian). Ficaram de fora, por lesão, um alemão e um francês. Prontos para entrar, dois argentinos, dois espanhóis, um italiano e dois ingleses.

Arsenal

Os Gunners iniciaram a partida decisiva contra o Valencia, na casa do adversário, com uma formidável legião estrangeira: um tcheco, um grego, dois franceses, um espanhol, um uruguaio, um suíço de origem kosovar, um bósnio naturalizado alemão, um inglês, um alemão de origem turca, Mesut Özil, e o artilheiro nascido no Gabão, Aubameyang. À espera de sua vez, um egípcio, um francês, um alemão, um alemão de origem albanesa, um armênio, um nigeriano e um inglês.

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