Esporte

Luta greco-romana, o último reduto masculino na Olimpíada de Tóquio

Modalidade nunca foi disputada por mulheres, que só podem competir na luta livre. A justificativa apresentada para as atletas não convence

Atleta de luta livre e professora de greco-romana, Dailane Reis. Créditos: Arquivo Pessoal Atleta de luta livre e professora de greco-romana, Dailane Reis. Créditos: Arquivo Pessoal
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Por Sanny Bertoldo*

Você consegue imaginar alguma modalidade na Olimpíada de Tóquio em que não haja uma única mulher competindo? Pois ela existe, e é a luta greco-romana. Presente nos Jogos desde a primeira edição da Era Moderna, em 1896, em Atenas, continua sendo um reduto masculino em meio à equidade cada vez mais próxima nos Jogos – no Japão, 49% dos atletas são mulheres.

As poucas justificativas para a falta de mulheres na modalidade até hoje, diz Caroline Soares, presidente da comissão de atletas da Confederação Brasileira de Wrestling (CBW), não são nada convincentes e, por mais absurdas que possam parecer, ainda recorrem ao argumento de incompatibilidade física para o esporte.

“Já ouvi que, por ser só da cintura para cima e ser um esporte de muita força, pode machucar os seios. Para mim, esse argumento é machista. Se fosse assim, a gente não poderia fazer muitas outras modalidades também. Essa justificativa não encaixa”, diz.

Com a canoa feminina, que só entrou no programa olímpico agora, em Tóquio, aconteceu o mesmo. Presente desde Berlim-1936, a prova era vetada às mulheres porque, segundo os dirigentes do esporte, “o movimento unilateral característico da prática da canoa poderia danificar o corpo feminino (órgãos reprodutores, trato urinários, mamas, etc), causando potencialmente infertilidade, incontinência urinária e/ou causando o desenvolvimento desigual das partes do corpo”.

De acordo com a WomenCan International, uma associação mundial de canoístas criada para fazer lobby pela inclusão das mulheres na modalidade a partir dos Jogos de 2008, este foi um mito “perpetuado por dirigentes de todos os níveis da canoa olímpica”. Durante a campanha pela inclusão da categoria feminina, chamada “Vote sim pela canoa feminina”, até um conselho médico multidisciplinar composto por 11 especialistas foi criado para contestar esta tese biológica.

“Esse é um típico argumento do século 19 e é muito cômodo para a estrutura esportiva aceitá-lo. Ninguém questiona porque não convém questionar. Por isso a importância da ocupação dos espaços pelas mulheres. Mulheres nas comissões médicas, por exemplo, podem chegar e falar ‘parem de falar bobagem’, ‘o que você está falando não procede’. Agora, quando você não tem mulheres nesses lugares de poder, os homens que constroem esses argumentos continuam falando sozinhos”, afirma Katia Rubio, professora da faculdade de educação da Universidade de São Paulo.

Já ouvi que, por ser só da cintura para cima e ser um esporte de muita força, pode machucar os seios. Para mim, esse argumento é machista. Se fosse assim, a gente não poderia fazer muitas outras modalidades também

Caroline Soares, presidente da comissão de atletas da CBW

Das 50 modalidades em disputa nos Jogos de Tóquio, outras sete têm mais homens que mulheres: atletismo, polo aquático, ciclismo pista, futebol, boxe, ciclismo estrada e beisebol/softbol (o primeiro é disputado só por homens e, o segundo, só por mulheres). A ginástica rítmica e o nado artístico são exclusivamente femininas.

Maior disparidade entre os esportes

A luta greco-romana é uma das modalidades do wrestling (inicialmente chamada de luta olímpica no Brasil, hoje é conhecida por seu termo em inglês). Na outra, a luta livre, homens e mulheres podem competir. As modalidades se diferem pelo tipo de luta. No estilo livre, o atleta pode usar as pernas para atacar e defender; na greco-romana, só pode atacar e defender da cintura para cima. Se usar as pernas, sofre punição.

Em Tóquio, são 289 atletas de 61 países que brigarão por medalha a partir deste sábado, dia 31. Só na greco-romana, são 96. Eles se dividem em 12 categorias masculinas e apenas seis femininas e são o retrato de uma das maiores disparidades entre o número de homens e mulheres de um mesmo esporte em Tóquio. O Brasil será representado por três atletas: Aline Silva (76 kg) e Laís Nunes (62 kg) na luta livre e Eduard Soghomonyan (130kg) na greco-romana.

Embora não haja um movimento articulado pela greco-romana feminina como o que foi feito na canoa, lutadoras ao redor do mundo não deixam de praticar, estimular a modalidade e pedir por mudanças. Quando a União Mundial de Wrestling (UWW), entidade que comanda o esporte no mundo, viu-se obrigada a diminuir a quantidade de categorias masculinas e aumentar as femininas para 2021, atendendo à exigência do Comitê Olímpico Internacional (COI), a americana Alexis Porter, por exemplo, logo se manifestou.

Campeã mundial júnior e integrante da equipe americana de wrestling, ela escreveu: “Não podemos ficar satisfeitos apenas com esta mudança. É fundamental que pressionemos pelo acréscimo da luta greco-romana feminina nos Jogos. A paridade de gênero é uma das poucas chaves para a salvação do nosso esporte. E é importante que nós, como atletas, treinadores, fãs e o órgão regulador nacional, continuemos a gerar discussões e pressionar por mudanças. É minha esperança que um dia em breve eu possa fazer uma escolha para tentar o estilo livre feminino ou a equipe olímpica greco romana feminina”.

Esse é um típico argumento do século 19 e é muito cômodo para a estrutura esportiva aceitá-lo. Ninguém questiona porque não convém questionar. Mulheres nas comissões médicas, por exemplo, podem chegar e falar ‘parem de falar bobagem’, ‘o que você está falando não procede’

Katia Rubio, professora da faculdade de educação da Universidade de São Paulo

A UWW, ao que tudo indica, não parece inclinada a mudar de opinião. Em 2015, em uma entrevista ao site insidethegames, o presidente da entidade, Nenad Lalović, disse que para os Jogos de Tóquio seria impossível considerar a inclusão da categoria feminina da greco-romana porque “estavam muito perto”, mas que “poderia ser viável acontecer em 2024”. Cinco anos depois, a proposta feita foi outra: incluir a luta de praia nos Jogos Olímpicos de Paris. A ideia era que a modalidade só fosse disputada por mulheres, o que serviria para diminuir a diferença entre os gêneros na modalidade. O COI rejeitou e tudo permanece o mesmo.

Procurada pela Gênero e Número, a União Mundial de Wrestling não respondeu.

Potencial brasileiro

Em nome de uma “tradição” que ninguém consegue explicar exatamente como surgiu, negou-se a elas o direito de praticar o esporte por muito tempo. Nas Olimpíadas, a categoria feminina do estilo livre só foi permitida a partir de Atenas-2004, mais de cem anos depois dos homens. Na greco-romana, como não existe oficialmente a versão feminina, não há competições e, consequentemente, são poucas as atletas que se desenvolvem na categoria. No Brasil, Lucimar Pereira foi pioneira. Ex-integrante da seleção brasileira de judô, ela foi a principal atleta de wrestling do país até 2009, quando passou a ser treinadora e, por muito tempo, foi a única mulher a comandar uma equipe de luta greco-romana no país.

Para a niteroiense Dailane Reis, seguir os passos de Lucimar foi natural. Como sempre treinou com homens, até por não haver outras mulheres em sua equipe, desenvolveu uma postura típica da greco-romana. Quando começou a competir, precisou fazer adaptações em seu estilo. Dez vezes campeã brasileira, medalhista pan-americana e sul-americana, ela compete na categoria até 68 kg da luta livre.

“Minha postura é em pé. Eu faço a modalidade desde os 12 anos e na luta é muito difícil achar mulher, ainda mais naquela época. Eu era a única menina na minha equipe, a Niterói Wrestling, e sempre treinei com homens. Então, tive que me adaptar um pouquinho para a livre, já que minha postura é mais alta, meu tronco é mais forte. Eu posso usar essa técnica, mas tenho que ter cuidado com minhas pernas”, diz Reis, de 31 anos, dezenove deles dedicados ao esporte.

Além de competir na luta livre, ela também é professora de greco-romana na academia em Niterói. Formada em educação física, conta que já ajudou alunos a se classificarem para um campeonato sub-15 e para o Sul-Americano da categoria e impõe respeito neste ambiente que ainda insiste em ser tão masculino.

No Brasil, diz Caroline Soares, há muitas atletas com potencial para se destacar na greco-romana justamente por ter um jogo mais adaptado, alternando os golpes de perna com a pegada na parte superior do corpo. Dailane é uma delas. Aline Silva, que vai competir em Tóquio na luta livre, é outra. Como Caroline, Dailane não se convence dos argumentos contrários à presença de mulheres na luta greco-romana. Apesar de ser um esporte tradicional, o que falta mesmo é disposição para mudar:

“Quando se fala em luta, a pessoa imagina logo porrada, mas tem técnica para se proteger, tem muita coisa que pode ser adaptada sem fugir da cultura da modalidade, se o problema for esse. A mulher vai bem em tudo que se dedica”.

* Sanny Bertoldo é editora da Gênero e Número

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