Entrevistas

‘O Brasil pode virar uma teocracia miliciana, mesmo sem Bolsonaro’

Para Cesar Calejon, autor do livro ‘Tempestade Perfeita’, o presidente caminha para uma derrota em 2022. Mas o País ainda corre riscos

Foto: AFP
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Mesmo com a possível derrota do presidente Jair Bolsonaro na eleição de 2022, o bolsonarismo e tudo o que alimenta o movimento tendem a permanecer vivos na sociedade brasileira. É o que diz o jornalista Cesar Calejon, que lançou recentemente o livro ‘Tempestade Perfeita: o bolsonarismo e a sindemia Covid-19 no Brasil‘ pela editora Contracorrente.

“Se a gente continuar subvertendo o jogo da democracia, ou seja, se a gente tiver futuras Lava Jato, se continuar a estimular o dogma religioso no cerne da organização da vida sociopolítica do País e se permitir que esse processo de milicianização continue, daqui uns 30 anos, mesmo sem Bolsonaro e bolsonarismo, o Brasil pode se tornar uma teocracia miliciana”, afirmou o autor em entrevista a CartaCapital.

Para Calejon, a resistência do bolsonarismo – não propriamente do presidente – se deve ao fato de o movimento ser “uma expressão mais aguda de uma racionalidade neoliberal”. Mais do que não acabar, ele pode se moldar a novas feições.

“O nome da futura expressão desse modelo mais agudo da extrema-direita talvez não seja bolsonarismo e o líder que personificará todo esse veneno não seja Jair Bolsonaro, mas sem dúvida existirão futuras expressões que podem ser ainda mais agudas que o bolsonarismo”, esclarece.

Na obra, o jornalista define a origem da atual crise brasileira e busca apontar os principais responsáveis.

Leia a seguir.

CartaCapital: O que exatamente formou a tempestade perfeita que dá título ao seu livro?

Cesar Calejon: Essa tempestade começa a ser fomentada a partir do momento em que algumas forças da República, sobretudo a direita liberal, mídias hegemônicas e o setor industrial, não aceitam o resultado da eleição de 2014 e percebem que existe uma insatisfação no modelo de democracia representativa. Essa insatisfação foi catalisada por todo o protagonismo que as pessoas ganharam com o acesso a smartphones, pois elas passam a interagir de maneira menos unidimensional e passam a questionar a sua não participação na vida pública de maneira mais efetiva.

Em junho de 2013, por exemplo, havia um posicionamento difuso. Não era contra o PT e sim a favor de mais autonomia do Ministério Público, contra o preço dos transportes e por mais saúde e educação. Era uma miríade de desejos que se espalhou no mundo todo. Todo o Estado Moderno passou a questionar o próprio funcionamento da democracia representativa.

Com base nisso, em um modelo que sempre foi maniqueísta após a redemocratização do País, com as figuras de Lula e PT de um lado e de Fernando Henrique Cardoso e PSDB de outro, boa parte da direita liberal, com participação de forças estrangeiras, acreditou que ‘sangrar’ o PT significaria automaticamente assumir a presidência da República mais adiante.

Essa parte da vida pública brasileira começa a fomentar uma série de elitismos históricos culturais e de ódio na tentativa de acertar o PT. Eles até conseguiram, mas ao fazer isso eles acertaram muito mais do que o PT, chegaram à política institucional de maneira mais ampla, o que gerou um descrédito da própria política.

Com o antipetismo, o elitismo histórico cultural, o dogma religioso, a sensação antissistema e as novas ferramentas e estratégias de comunicação se ascende o bolsonarismo, que já vem à luz em um ambiente político conflituoso.

 

CC: E o que ocorre a partir da vitória de Bolsonaro?

Calejon: O que acontece sete anos depois, em março de 2020, é que estoura a maior crise pandêmica do século. O bolsonarismo tendo que lidar com essa crise a partir de um governo inapto, que atua com base no ódio e no descredito. É daí que se cria o que chamo de uma crise institucional com múltiplas dimensões.

A primeira dimensão que o bolsonarismo cria é dentro do próprio governo federal. É por isso que se viu com tanta frequência o vice-presidente [Hamilton Mourão] dizer que gostaria de participar de reuniões ministeriais e o Bolsonaro dizendo que ele atrapalha. Se viu deputado da base governista vindo a público denunciar esquema de corrupção na compra de vacina.

A segunda é entre os níveis federativos. No momento em que precisávamos de união sólida, o Bolsonaro, na ânsia de se livrar da responsabilidade, tentou culpar os governadores e os prefeitos e isso criou outra uma crise.

A terceira é do bolsonarismo do governo federal com os outros Poderes da República. Isso se expressa claramente na CPI e no embate que o STF vem promovendo contra o bolsonarismo.

Por fim, do governo federal junto à sociedade internacional, porque, na tentativa de se manter caninamente fiel ao trumpismo, brigou com a China, com o Biden, com a França ofendendo a mulher do presidente e com a Argentina. No fundo, tornou o Brasil um pária internacional.

A crise institucional promovida pelo bolsonarismo e a crise sanitária criaram múltiplas crises interagindo simultaneamente neste momento. Formou-se um processo sindemico e daí o nome do livro.

CC: Você consegue encontrar uma lógica nas ações do bolsonarismo?

Calejon: Não tenho uma resposta categórica, mas desses cinco elementos [o antipetismo, o elitismo histórico cultural, o dogma religioso, o antissistema e as novas ferramentas e estratégias de comunicação], a maioria arrefeceu, mas dois são fundamentais: o elitismo histórico cultural e o dogma religioso.

O Bolsonaro enquanto figura pública e o bolsonarismo como movimento sociopolítico são unidimensionais. Eles não têm resiliência. Pensa, como exemplo, em um jogador de futebol. Quando tem qualidade, pode cortar para um lado para chutar com a perna ruim. Ou seja, ele pode tentar resolver a questão com um drible mais elaborado porque tem essa carta na manga, tem essa qualidade. O bolsonarismo e o Bolsonaro não têm isso. O presidente só consegue fazer a manutenção da proposta política dele com base no ódio e no deboche.

Esses elementos explicam o porquê dele agir dessa maneira. Ele é muito restrito politicamente, assim como os seguidores dele, que são pessoas que nunca leram nada, não estudaram, não têm nenhum tipo de elemento mais elaborado para apontar as suas próprias atuações e que dependem do elitismo histórico cultural, que é uma construção secular. No Brasil, que foi um País colonizado, esse elitismo, organizado em cima de racismo, misoginia e homofobia, tem muita adesão da população. Ele foi consolidado por 350, 400 anos e que começa a ser questionado agora, mas não pode ser alterado em 5, 10, 20 ou 30 anos.

Se a gente fomentar o pensamento crítico e insistir no combate à fragilidade intelectual da população brasileira, talvez em 150 ou 200 anos a gente consiga contestar isso.

O dogma religioso, quando consideramos a adesão dos evangélicos ao bolsonarismo, não permite contestação. Ele prega o seguinte: ‘quem tem que mandar no mundo são homens, brancos e heterossexuais e se você discorda disso você é do mundo, não tem fé, não respeita a família tradicional e tem que ser execrado’.

Portanto, o Bolsonaro age assim porque esse é o único caminho que ele tem para agir e que em algum momento foi eficiente. Quanto vai ser eficiente em 2022 é questionável, mas ele não tem elementos para agir de forma diferente.

CC: Essas características que moldam o bolsonarismo estavam aí à espera de uma liderança?

Calejon:  A República Brasileira traz na sua organização todo um legado do Brasil Colônia e do Brasil Império. Foi o último país a abolir a escravidão na América, foi o que trouxe o maior número de escravizados e ficou com o patrimonialismo e o mandonismo, tudo isso se manifesta com muita ênfase na sociedade e tem muita aderência no bolsonarismo. É por isso que ele bate na mesa, diz que é imbrochável e que tem café no bule.

O próprio Bolsonaro não entende isso com essa integralidade que estou dizendo, mas ele sente que quando age de determinada maneira tem ressonância junto à população.

O elitismo histórico cultural já estava presente e foi decisivo na organização do nosso arranjo social dos últimos séculos. Já o dogma religioso não é uma construção tão secular no Brasil, mas organiza os arranjos sociais sobretudo nos últimos 50 anos com a ascensão de propostas do neopentecostalismo, que é muito mais um fenômeno da comunicação do que da religião.

CC: E o que o Brasil pode se tornar?

Calejon: O que é preocupante é que o dogma religioso cresce de forma exponencial. O antipetismo arrefeceu, e a sensação de anti-sistema também, porque o Bolsonaro caiu no colo do Centrão e vai ser difícil ele se vender agora como alguém que está apto a combater a corrupção dos políticos. Quanto às novas ferramentas e estratégias de comunicação, ele vai querer reformulá-las, mas é difícil porque o truque é mais efetivo quando se utiliza pela primeira vez. Quando se faz repetidamente, se perde eficácia, já que o adversário começa a prestar atenção naquilo que você faz.

No livro, eu argumento que se a gente continuar subvertendo o jogo da democracia, ou seja, se a gente tiver futuras Lava Jato, se a gente continuar a estimular o dogma religioso no cerne da organização da vida sociopolítica do país e se a gente permitir que esse processo de milicianização continue daqui uns 30 anos, mesmo sem Bolsonaro e bolsonarismo, o Brasil pode se tornar uma teocracia miliciana com base e fundamentos dogmáticos religiosos.

O bolsonarismo é o reflexo de um modelo de sociabilidade que se organiza com base nessa racionalidade neoliberal

CC: A teocracia miliciana com base e fundamentos dogmáticos religiosos seria um caso único no mundo?

Calejon: Existem semelhanças. Com frequência, se compara com o fascismo do Mussolini, com o taleban no Afeganistão, com o nazismo. Eu trabalho com a categoria do elitismo histórico cultural. Como o nome já diz, os elementos são históricos e culturais e se aplicam em determinadas quadras históricas para determinado povo e cultura.

Existem elementos em comum em todas essas propostas. Via de regra, lidam com o cerceamento do debate, de explorar questões sectárias ou ódio, tentam subjugar os grupos que estão politicamente minoritários, mas socialmente majoritários. Todos esses aspectos estavam presentes no nazismo e estão presentes no taleban, na Hungria de Viktor Orban, na Itália de Matteo Salvani e no Brasil de Bolsonaro.

Mas cada país tem suas peculiaridades, portanto, tem que tomar cuidado com essa generalização. Apesar de existirem  pontos em comum, cada movimento tem as suas propriedades, porque os desenvolvimentos dessas nações são peculiares. É importante não colocar tudo no mesmo balaio.

CC: O bolsonarismo não acaba com o Bolsonaro?

Calejon: Sem dúvida que não acaba, porque o bolsonarismo é só uma expressão mais aguda dessa racionalidade neoliberal e de todos esses fatores já citados. O senso comum entende o neoliberalismo como um conjunto de práticas macroeconômicas. Isso é um reducionismo absurdo.

O neoliberalismo é sobretudo uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. Nesse sentido, o neoliberalismo pode ser definido da seguinte maneira: o conjunto de práticas e discursos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo um certo princípio universal da concorrência. Esse princípio legaliza a concorrência como um parâmetro natural da atividade humana, como se não tivéssemos como evitá-la. Em uma concorrência ou competição, tem alguém que sai vitorioso e alguém que perde. É a partir daí que o princípio da concorrência naturaliza a desigualdade.

O bolsonarismo é o reflexo de um modelo de sociabilidade que se organiza com base nessa racionalidade neoliberal, do elitismo histórico cultural, do dogma religioso e da negação da própria política.. Ele não acaba com a derrocada do Bolsonaro no ano que vem.

O nome da futura expressão desse modelo mais agudo da extrema direita talvez não  seja bolsonarismo e o líder que personificará todo esse veneno não seja Jair Bolsonaro, mas sem dúvida existirão futuras expressões que podem ser ainda mais agudas que o bolsonarismo.

CC: O Bolsonaro caminha para uma derrota em 2022?

Calejon: O bolsonarismo teve a melhor chance que um líder populista poderia pedir a Deus para unificar a nação ao seu redor, que é um inimigo externo. A Covid-19 é, entre aspas, o melhor inimigo externo que qualquer líder dessa natureza poderia pedir. Se em março de 2020 o Bolsonaro chega em cadeia nacional e diz ‘povo brasileiro, sei que tivemos diferenças até esse ponto, mas agora existe um inimigo poderoso do outro lado e temos que nos unir para enfrentá-lo’, ele teria unido a nação ao seu redor de forma que estaria reeleito e possivelmente elegeria um dos filhos para substituí-lo. A gente teria Bolsonaro por mais 20 ou 30 anos.

Como ele não faz isso e inacreditavelmente se alia ao vírus contra a população, o bolsonarismo se desidratou de maneira rápida. O que vem para 2022 é um Bolsonaro enfraquecido, talvez não quanto ele esteja neste momento. Mas, para mim, não parece que ele tenha a mínima condição de se reeleger.

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