Entrevistas

Leci Brandão encoraja atos contra Bolsonaro: ‘Mobilização não pode parar’

Autora de projeto que suspende despejos em São Paulo, a deputada e sambista manifesta apoio a mobilizações convocadas para 19 de junho

Leci Brandão, tradicional sambista da Estação Primeira de Mangueira, hoje deputada estadual em São Paulo. Foto: Reprodução
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“Pobre não tem direito a nada. Sendo negro ou pardo, a Polícia já considera suspeito.”

Sambista e deputada estadual de São Paulo pelo PCdoB, Leci Brandão levou mais de um ano para ver a Assembleia Legislativa aprovar o seu projeto que suspende despejos durante a pandemia. Uma demora contraditória, em tempos que as televisões tanto dizem para o povo ficar em casa. E ainda lhe falta a certeza de que o governador João Doria (PSDB) sancionará o texto.

É desolador, diz a artista, em entrevista a CartaCapital. O estado brasileiro mais rico vê a população de rua disparar. O último dado da capital paulista é de janeiro de 2020, que apontou 25 mil pessoas nessa condição. O Observatório de Remoções, com informações mais atualizadas, aponta aumento no número de despejos se comparados o 1º trimestre de 2021 (354) com mesmo período do ano passado (245).

Somado a isso, acrescenta Leci Brandão, a gestão de Jair Bolsonaro é um desgoverno, afronta a ciência, oferece um auxílio emergencial medíocre e ainda semeia o temor de um novo golpe. Quando é que o povo, enfim, iria reagir?

Vieram, então, os atos contra Bolsonaro em 29 de maio, com a esperança de que falta uma gotinha para a água transbordar do pote. “Eu já estava muito nervosa. Não é possível que o Brasil esteja anestesiado.”

A mobilização não pode parar, diz Leci Brandão, sobre os atos de 19 de junho.

Nascida e criada na pobreza, no subúrbio do Rio de Janeiro, Leci Brandão, hoje aos 76 anos, fez do seu canto a voz daqueles que não podiam falar. A arte tem o poder de clarear os pensamentos, já havia dito ela ao colunista Augusto Diniz. E conforme cantava em “Caras Pintadas”, sua esperança de luta agora, diz ela, está nos jovens.

Confira, a seguir, a entrevista na íntegra.

CartaCapital: O que levou a senhora a apresentar esse projeto?

Leci Brandão: Dentro daquela casa de 94 deputados, talvez eu seja uma das pessoas que tenha o menor conhecimento. Mas venho de uma história de dificuldade, nascente da pobreza. Minha avó morava em casa de cômodos, que o pessoal chama de cortiço, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Minha mãe era servente de escola e se tornou moradora para não pagar aluguel. Fui moradora de escola pública por muitos anos, desde os sete anos de idade. Uma em Vila Isabel, outra na Pavuna, e a última foi em Realengo.

Para morar na escola, tinha que ter um trabalho maior do que os outros serventes, varrendo sala, limpando banheiro. Chegou um momento em que tive que ajudar minha mãe. Na adolescência, eu já estada forjada na limpeza. Chegava do colégio, tirava o uniforme, punha a roupa, botava um pano na cabeça e ia varrer sala, apanhar poeira, de manhã, de tarde e de noite. Evidentemente, a gente sentiu a pobreza.

 

Paralelamente a essa situação, eu tive a oportunidade de mudar. Tudo porque houve um programa na TV Tupi, chamado A Grande Chance, do qual eu participei em 1968. Fui muito comentada, pelo fato de ser uma garota negra, de origem humilde e compositora. Consegui um emprego na Universidade Gama Filho, no departamento pessoal, e tentei até fazer um curso de ciências jurídicas, mas não foi possível. O que Deus fez comigo? Através da minha arte, fiz a defesa dos menos favorecidos.

Todos que conhecem minha discografia vão sempre encontrar uma faixa em que eu falo de alguma questão social. Sempre fui uma lutadora, defensora das minorias, negros, nordestinos, indígenas, tudo através da arte. Em 1981, uma gravadora implicou com o meu repertório com a justificativa de que eu tinha que fazer um trabalho “mais leve”. Fiquei 5 anos sem gravar nesse país e voltei em 1985, quando São Paulo começou a me conhecer. Cantei nas Diretas, para o MST, para os LGBTs.

Sempre cantei a favor de quem não podia falar.

Então, eu estou no estado de São Paulo, o mais rico do Brasil, numa Assembleia Legislativa em que a maioria dos sobrenomes são estrangeiros. Todo mundo mora muito bem, em apartamentos por andar, tem terra. Jamais poderia imaginar que um dia as pessoas me convidariam para ser candidata, pelo PCdoB, em 2009. Fiquei reticente, mas os movimentos que me conheciam dos palcos fizeram campanha. E fui eleita em 2010. O nome do nosso gabinete é Quilombo da Diversidade.

Aqui em São Paulo, a cada dia aumenta mais o número de famílias que estão na rua. A pandemia expôs uma fratura. A Assembleia resolveu fazer um projetão e, dentro das coisas que foram solicitadas, tinha a questão do despejo. As pessoas têm que entender que, ao menos durante a pandemia, isso não pode acontecer. Dói muito no coração ver uma família que tinha o seu teto e de repente fica sem nada. Quando tem reintegração, a polícia já chega batendo, chama a retroescavadeira e vai derrubando tudo. E tem gente que também observou muitos prédios abandonados há anos e ocuparam. São crianças, idosos, jovens, que necessitam de amparo.

O projeto passou, mas quando chegou na hora dos destaques, teve a confusão. Ficamos por seis semanas nessa história. E te digo mais, acho que o governador não vai sancionar. Gente, é um projeto é humanitário. Já está todo mundo com fome e desempregado. Vocês querem que as pessoas vão para a rua? Não se comovem com a falta de dignidade?

CC: O sindicato dos empresários do setor imobiliário protestaram contra o seu projeto. Por que o projeto os desagrada?

LB: Desagrada porque, evidentemente, essa turma tem posse de terras, fazendas, prédios. Eles não querem, de forma alguma, que essa gente invada as coisas deles. Agora, está disparando a população que mora em pracinhas, viadutos. A gente ouve depoimentos de pessoas que tinham geladeira, cama, e agora tudo está no meio da rua. E com esse auxílio medíocre, vergonhoso, de 250 reais, não tem condição.

A deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-SP), autora de projeto que suspende despejos e remoções em São Paulo. Foto: Carol Jacob/Alesp

CC: Qual sua opinião sobre os atos convocados para 19 de junho?

LB: Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. Eu já estava muito nervosa de não ver essa mobilização. Eu falei: não é possível que o Brasil esteja anestesiado. Não é possível que ninguém esteja vendo a destruição, o retrocesso. É desolador. Pobre não tem direito a nada. E sendo negro ou pardo, a Polícia já te considera suspeito.

De repente, as pessoas começaram a acordar. Fiquei muito feliz de ver o número de pessoas que foram às ruas. Mas é preciso que não pare. Essa mobilização não pode parar.

Tem muita manobra que está sendo feita para que as pessoas não entendam a realidade do nosso país. Quando você vê o percentual que não cai em relação ao desgoverno, eu me preocupo bastante. Eu vejo um farolzinho, pequenininho, no fim do túnel, com alguma noção de luz, de consciência na cabeça das pessoas. Só o povo vai poder mudar isso. Não dá para aceitar um governo que desrespeita a ciência. E na mobilização que tivemos agora, a sua maioria estava de máscara.

Manifestações por todo o Brasil pediram derrubada do presidente Jair Bolsonaro. (Foto: Nelson Almeida/AFP)

CC: E como criar coragem para lutar?

LB: É uma pergunta difícil. A gente fez até uma música em 1990 chamada “Cara Pintada”. Muito bonita. Eu me lembro que o presidente tinha mandado as pessoas irem de verde e amarelo para as ruas e foi todo mundo de preto.

O que eu acho é que não havia essa coisa da internet. Pode parecer que não, mas ela está prejudicando muito. Xingam, destroem você, e você não sabe quem é, a covardia é muito grande. E a violência. Viu o que aconteceu em Recife? A Polícia atirou em dois homens que nem estavam na manifestação. O que me faz temer é que um desgoverno tão autoritário e ofensivo arrume um negócio, meio um golpe aqui, sabe. Eu fico pensando muito nisso. A questão do Pazuello já deu um sinal de quem manda é quem manda mesmo.

Então, ninguém quer sair de casa para brigar pela democracia e não voltar. A gente não nasceu para morrer de uma forma estúpida. A gente quer morrer naturalmente, na hora que Deus determina. Esse medo ronda as pessoas.

Mas minha esperança, hoje em dia, são os jovens. Acho que a juventude tem, ainda, noção de luta. Que não leva desaforo para casa. E a população negra tem uma juventude muito forte, meninos que moram nas comunidades, sem estrutura, e que criam projetos e coletivos magníficos.

E eu acredito muito em Deus, alguma coisa vai acontecer nesse País. Já gostei muito do sinal do dia 29. Que a gente continue fazendo com que ele fique aceso. Falta uma gotinha para transbordar a água do pote.

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