Educação

Por que as escolas estaduais de SP resistem à educação integral?

O pano de fundo para que o País saia das ‘políticas que geram a desigualdade’ é discutir o financiamento da educação pública

Estudantes da escola estadual Albino César paralisaram as aulas em protesto contra o programa do governo. Crédito: Reprodução
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No dia 4 de setembro, um grupo de estudantes da Escola Estadual Albino César, localizada na zona norte de São Paulo, paralisou a rotina de aulas. Os alunos se reuniram no pátio em protesto contra a possibilidade de a escola aderir ao Programa de Ensino Integral (PEI) ofertado pelo governo do Estado. Os alunos também se dirigiram à Secretaria de Educação para reivindicar que participassem da decisão de aderir ou não à política. Por fim, a escola refutou a proposta.

Durante a manifestação, os estudantes levantaram as seguintes questões: seria justo ter de escolher entre estudar e trabalhar? As escolas conseguiriam garantir condições de infraestrutura mínimas (refeições e itens de higiene, como papel higiênico) para que eles permanecessem ali por mais tempo? E os jovens que precisam estudar a noite, como fariam?

A ação se deu diante um chamamento da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo para ampliar o programa, que hoje atende 417 escolas da rede, 7,72% do total. A expansão pretendia abarcar pelo menos 100 novas unidades escolares com média de 500 estudantes cada. As escolas puderam aderir ao programa até o dia 26 de setembro.

As manifestações não aconteceram somente na escola da zona norte e se espalharam a outras da rede estadual, que negaram o programa via seus conselhos de escola. A reportagem pediu à Secretaria de Educação o número de escolas que aderiram ao programa nesta fase de expansão, mas a pasta afirmou não ter um levantamento consolidado até o momento.

Ensino integral ou desigualdade educacional?

Uma das diretrizes do PEI é ampliar a carga horária na escola para até nove horas e meia por dia. Nas escolas regulares, o tempo de permanência é de cinco horas. O governo defende que a ampliação do tempo associada a uma matriz curricular diferenciada é necessária para contribuir com a aprendizagem dos estudantes, medida por avaliações externas, além de aumentar a empregabilidade e a renda deles.

A ampliação do tempo na escola deve ser considerada na perspectiva da educação integral, que prevê a formação integral dos sujeitos em suas dimensões – intelectual, física, emocional, social e cultural. O modelo, inclusive, é uma das metas do Plano Nacional de Educação e entendido como uma das estratégias para diminuir as desigualdades da educação pública brasileira. A questão é que a oferta do Estado não dialoga com esse conceito propriamente e apresenta uma visão mais tecnicista do processo de ensino aprendizagem, não consolidando a política para a igualdade de direitos.

 

É sobre este aspecto que se assentam as críticas dos pesquisadores Eduardo Donizetti Girotto, da Universidade de São Paulo, e Fernando Cássio, da Universidade Federal do ABC, que têm concentrado suas pesquisas no PEI desde a sua criação em 2012 – as análises estão colocadas no artigo “A Desigualdade é a Meta, Implicações Socioespaciais do Programa de Ensino Integral da Cidade de São Paulo” e no livro “Atlas da Rede Estadual da Educação de São Paulo”, da editora CRV.

Os especialistas afirmam que o programa “tem ampliado a desigualdade entre as unidades escolares da rede estadual paulista, produzindo ilhas de excelência em um mar de fracasso e evasão”.

Para chegarem à conclusão, os pesquisadores avaliaram o perfil socioeconômico das escolas PEI em relação às demais da rede, com base no questionário do Saeb dos anos de 2013 e 2015 (escolas que aderiram ao programa em 2012 e 2014). Também consideraram os resultados dos índices educacionais, medidos pelo Idesp, nos anos de 2011 e 2016. A amostra considerou 50 unidades escolares da cidade de São Paulo, que representavam 16,2% do total de escolas PEI do estado.

O estudo apoiou o levantamento de quatro hipóteses que sustentam uma nota técnica sobre o programa, elaborada pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu):

1. As escolas de ensino integral privilegiam áreas de baixa vulnerabilidade social
Ao avaliarem a localização das escolas PEI, os pesquisadores concluíram que a maior parte delas estava localizada na área do centro expandido da cidade de São Paulo, áreas de urbanização consolidada, com maior disponibilidade de bens, serviços e equipamentos públicos e privados. Ou seja, regiões de baixa vulnerabilidade social. Esse é um fator que gera desigualdade, avalia Cássio. “Existe uma grande variação de nível socioeconômico dentro da rede pública. É ingênua essa coisa de que na escola pública só estuda gente muito pobre. Há uma elite econômica na rede e ela está nas escolas integrais”, afirma. Os pesquisadores afirmam que a distribuição espacial das unidades minimizam as possibilidades do ensino integral como política pública capaz de ampliar o direito à educação.

Em 2016, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) selecionou uma amostra de escolas participantes do programa e produziu alguns dados sobre elas. Das 39 escolas pesquisadas na capital paulista, o órgão constatou que 29 delas (75%) ficam em regiões cuja renda média familiar é superior a 1.600 reais, e apenas dez escolas estão em distritos mais pobres, como Capão Redondo e Itaim Paulista.

Na pesquisa, Girotto e Cássio mostram que o programa privilegiou, desde o início, unidades escolares com estudantes de nível socioeconômico mais altos, em movimento contrário ao que acontece nas unidades escolares do entorno.

2. As escolas PEI promovem redução de atendimento na rede estadual
Outro ponto avaliado pelos especialistas é que as escolas de ensino integral promovem redução de matrículas, turmas e turnos. O modelo promove um impacto direto sobre os estudantes do período noturno. “Uma vez que a escola é instalada, as classes noturnas são fechadas imediatamente. E o estudante de Ensino Médio do noturno não vai estudar no integral, certo? Então ele está fora da escola. Os alunos mais pobres vão saindo da escola”, avalia Cássio. Com base nos dados do Censo Escolar de 2011 a 2018, os pesquisadores mostram que as matrículas na modalidade EJA sofreram queda de 75,3% e no Ensino Médio de 46,1%.

O fenômeno acaba por sobrecarregar as escolas regulares que estão no entorno das de ensino integral. “As escolas regulares próximas a essas unidades acabam ficando lotadas, com mais classes e mais alunos, o que acaba por sobrecarregá-las e torná-las as mais precárias da rede”, esclarece o pesquisador, reforçando a tese de que as escolas PEI acabam criando “ilhas de excelência”.

3. O programa causa diminuição de cargos docentes na rede estadual
Ainda com base nos dados do Censo Escolar de 2011 a 2018, os pesquisadores identificaram uma redução de 27% do número de docentes nas escolas de ensino integral. No mesmo período, nas demais escolas da rede, a queda foi de 8%. Os pesquisadores reconhecem alguns fatores para explicar o cenário. Primeiro, a redução da rede: com menos matrículas, salas e turnos, tem-se menos professores. Depois, os especialistas questionam as condições de trabalho que os docentes passam a ter no modelo. O programa preconiza um regime de dedicação exclusiva aos professores, com acréscimo de 75% de remuneração sobre o salário base. “A jornada única não é ruim do ponto de vista do planejamento do professor [pelo programa, são 40 horas semanais, 26 em sala de aula e 14 dedicada ao planejamento], mas ela deve ser pensada com base em um plano de carreira e não um mecanismo de gratificação”, condena Girotto.

Como o acréscimo financeiro se dá apenas sobre o salário base, sem considerar as gratificações da carreira, o especialista coloca que, na prática, os professores podem ganhar menos do que ganhariam se dessem aula em duas escolas, uma do Estado e outra da prefeitura. Ainda que esse cenário não seja o ideal para os profissionais, ele é comum entre os docentes.

Girotto ainda coloca questões sobre o modelo de contratação dos docentes. Embora eles continuem concursados, “eles perdem a estabilidade da carreira”, coloca o pesquisador. O desempenho dos professores passará por uma avaliação 360º, que pode levar ao desligamento deles das escolas. Além disso, o especialista aponta que direitos como faltas abonadas, de greve, ou afastamento por doença também geram punições, com perda de pontuação. “O que se estabelece é uma lógica empresarial de gestão. Veja, há uma distorção da ideia de que um professor estabilizado é acomodado. Estabilidade para um docente é garantir determinada liberdade de pensamento, não estabelecer perseguição ao profissional por questões políticas ou de gênero, além de promover programas de indução profissional”, atesta.

O especialista entende que o programa vai na contramão disso. “Com pressão e ameaça constantes sobre os professores o que se cria são condições para aprovar as reformas educacionais, pauta das políticas neoliberais”, observa.

4. O modelo de gestão por resultados cria um clima de competição nas escolas
Os pesquisadores ainda colocam que, uma vez pautado pela melhoria dos índices educacionais medidos em avaliações externas, o programa cria um clima de competição entre estudantes, professores, coordenação, direção e supervisão.

Uma questão de financiamento

Os pesquisadores entendem que o pano de fundo para que o País saia das “políticas que gerem a desigualdade” é discutir o financiamento da educação pública. “Quanto estamos dispostos a investir para que meninos e meninas possam ter acesso à escola, com professores de dedicação exclusiva? Isso está colocado no Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), ponto de partida para construirmos o Sistema Nacional de Educação. Sem isso, e sem recursos para todo mundo, vamos continuar escolhendo políticas que prometem uma gestão diferente para uma parcela pequena, o que significa reforçar a desigualdade”, alerta Girotto.

Nesse sentido, o pesquisador entende que as políticas de ensino integral como são hoje criam dados e caminhos que não são universais e nem podem ser universalizados. A “melhora” dos indicadores então seria, de certa maneira, forjada. “A rede ‘melhora’ porque ela promove essa redução de atendimento e coloca para fora os ‘meninos problema’, e isso é preocupante se pensarmos também do ponto de vista do aumento da taxa de homicídios entre jovens e o elevado encarceramento desta população. Essas questões estão intimamente ligadas”, pondera.

Uma pesquisa realizada pelo CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), nos anos de 2015 e 2016, sobre as políticas de ensino integral nos estados de São Paulo, Goiás, Ceará e Pernambuco, também apontou desigualdades educacionais geradas a partir da diferença de oferta de ensino – integral e regular – nas redes. O diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec, Romualdo Portela, corrobora com a tese de que a base de sucesso da política é o financiamento. “A existência de ofertas diferentes só é aceitável em uma política de transição que, a médio prazo, comportará todos os estudantes em um único modelo. Ainda assim, se a ideia é levar para o campo da equidade que se comece a ofertar o ensino integral nas regiões mais vulneráveis e não o contrário”, atesta.

Portela ainda coloca que a ideia de educação integral (diferente do ensino integral), entendida como uma formação ampla dos sujeitos, não pode se dar com base nas mesmas escolas que temos hoje. “É preciso repensar o modelo de escola, incorporar outras linguagens, como a artística, a educação do corpo. E sim, essas unidades custam mais. Não faz o menor sentido aos estudantes permanecerem por mais horas em uma escola assistindo às aulas tradicionais. Isso só cria uma bomba relógio”.

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