Biologia

O vírus invisível do Ebola

Não é de agora que a enfermidade mata africanos. A doença, porém, 
não interessa à indústria farmacêutica

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Com mais de 2 mil mortes desde fevereiro e o aumento de contaminações, o maior surto já visto do ebola ganhou espaço no noticiário e levou o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA a afirmar que a epidemia está fora de controle.

Para entender a gravidade e as razões da escalada da enfermidade, porém, é preciso lembrar não ser de hoje que a doença causa sofrimento ao povo africano. O vírus causador de uma febre hemorrágica cuja letalidade pode chegar a 90% foi identificado pela primeira vez em 1976, mas, mesmo diante de todo o avanço da ciência, ainda não existe vacina ou medicamento para combatê-lo.

Leia atividade didática de Biologia inspirada neste texto
Competências: Compreeder interações entre organismos e ambiente, em particular aquelas relacionadas à saúde humana
Habilidades: Identificar padrões em fenômenos e processos vitais dos organismos, como manutenção do equilíbrio interno, defesa, relações com o ambiente, sexualidade, entre outros. Interpretar modelos e experimentos para explicar fenômenos ou processos biológicos.
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1) Discuta a infeção do ebola, formas de transmissão, sintomas, tratamento, prevenção e educação em saúde. Centre a discussão nos determinantes sociais na relação dos processos saúde/doença: o que é saúde no seu mais amplo conceito, onde a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde.

2) Ter saúde não significa somente não estar doente. Discuta esses conceitos, juntamente com o contexto social africano, marcado historicamente nos processos de colonização por exploração das riquezas (minérios), tráfico de seres humanos (escravidão), inúmeros conflitos armados, doenças e miséria.

3) A discussão pode e deve ultrapassar o contexto africano para a realidade brasileira. Questione com os alunos o que tem sido feito para que a população tenha saúde no seu conceito mais amplo. É interessante debater, por exemplo, o movimento dos sem-teto, a reforma agrária, meio ambiente em relação ao lixo e à dengue, o impacto da falta de água na vida das pessoas e na saúde, acesso a serviços de saúde, mobilidade urbana, ciclovias, transporte público. É um bom momento para falar do Programa Bolsa Família do governo federal, sobre o qual ainda paira uma certa dose de preconceito, mesmo tendo sido reconhecido e premiado pela ONU como exemplo de erradicação da pobreza e de melhoria das condições sociais da população miserável.

4) Momento oportuno também para apresentar ou aprofundar os conhecimentos sobre os Objetivos do Milênio, criado pela ONU, em 2000, e que analisou os maiores problemas mundiais e estabeleceu oito objetivos para serem atingidos, um compromisso para combater a extrema pobreza e outros males da sociedade, como no caso em questão o objetivo de número 6 trata a questão do combate a Aids e as doenças negligenciadas. Consulte: http://www.pnud.org.br/ODM.aspx

5) A discussão também pode ser feita em relação ao modelo econômico e à questão da indústria farmacêutica e o lucro, demonstrando que, se e a indústria visa o lucro, naturalmente não terá interesse em produzir medicamentos ou vacinas para as doenças dos pobres. Qual o caminho a seguir? Como os países se mobilizam para essa questão? O que é a agência Organização Mundial da Saúde (OMS) das Nações Unidades (ONU)? Por que houve cortes no orçamento da OMS nos últimos anos.[/bs_citem]

O ebola faz parte das chamadas “doenças negligenciadas”. Consideradas endêmicas em populações de baixa renda e causadas por agentes infecciosos ou parasitas, tais enfermidades, embora atinjam milhares de pessoas, apresentam investimentos reduzidos em pesquisas, produção de medicamentos e controle. É o caso, por exemplo, de doenças tropicais como a malária, a doença de chagas, a doença do sono, a leishmaniose visceral, a filariose linfática, a dengue e a esquistossomose.

Um olhar crítico sobre a realidade das regiões devastadas pelo ebola permite enxergar claramente que as condições sociais e de saúde pública são inadequadas. As estruturas de atendimento aos pacientes são precárias, o acesso aos hospitais é difícil, não há controle de infecção hospitalar e quase nenhuma capacidade para realizar vigilância epidemiológica, ação crucial para controlar uma epidemia. Os profissionais de saúde também são vítimas dessa situação.

Muitos têm sido infectados ao atenderem doentes sem condições mínimas de biossegurança, pois faltam equipamentos de proteção individual (como simples luvas e aventais) e até mesmo pelo fato de os sintomas iniciais do ebola serem confundidos com outras doenças comuns na região, como infecções intestinais, malária e a febre tifoide. Não bastasse, práticas culturais e religiosas dificultam ainda mais a contenção do surto. Parentes e amigos dos doentes estão sendo infectados ao cuidar de pacientes em casa ou durante os rituais praticados em velórios.

O vírus ebola é transmitido para os seres humanos por meio do contato com sangue ou fluidos corporais de animais infectados, como chimpanzés, gorilas, morcegos-gigantes, antílopes e porcos-espinhos. A transmissão de uma pessoa para outra se dá da mesma forma ou por contato com objetos contaminados, como agulhas de injeção e lençóis utilizados pelos doentes. O período de transmissibilidade só se inicia com o aparecimento dos sintomas.

O ebola não é transmitido por alimentos, pelo ar, como a gripe, nem por picadas de mosquitos, como ocorre com a dengue. É triste, no entanto, constatar que seria perfeitamente possível controlar essa situação com medidas relativamente simples, como práticas básicas de biossegurança em serviços de saúde e no atendimento aos doentes (isolamento dos pacientes, uso de máscaras, luvas e aventais pelos profissionais de saúde, e limpeza adequada de superfícies, entre outras) e, na comunidade, trabalhar a educação em saúde no sentido de evitar que pessoas tenham contato com o sangue e fluidos corporais dos pacientes ou de animais infectados. Para isso funcionar, a rede de assistência em saúde precisa estar organizada e preparada com equipamentos e profissionais treinados, o que, infelizmente, não acontece na África.

Para John Asthon, presidente da UK Faculdade de Saúde Pública, não há dúvidas: “O verdadeiro foco precisa estar na pobreza e na miséria ambiental em que as epidemias prosperam. A comunidade internacional deveria se envergonhar da sua falta de compromisso com as doenças negligenciadas, já estabelecidas como um dos objetivos do milênio para o desenvolvimento”. O médico e pesquisador belga Peter Piot, um dos responsáveis pelo isolamento do vírus em uma aldeia no Congo, chamada Yambuku, e que o batizou com o nome de um rio para evitar o estigma na comunidade, define o ebola como a “doença da pobreza, dos sistemas de saúde deficientes”.

Um relatório da ONU, publicado em abril de 2014 (Health Statistics 2014) sobre a saúde global, traz dados que demonstram como a desigualdade afeta diretamente os cuidados da saúde, interferindo nos processos de adoecimento e acesso a serviços. “Há ainda uma grande divisão entre ricos e pobres: as pessoas em países de alta renda continuam a ter uma chance muito maior de viver mais tempo do que as de países de baixa renda”, afirmou Margaret Chan, diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS).

É urgente discutir com mais seriedade sobre o desenvolvimento econômico, a distribuição de recursos e o processo de saúde e doença. Como disse Asthon, é preciso “enfrentar o escândalo da falta de vontade da indústria farmacêutica no investimento em pesquisa para produzir tratamentos e vacinas, algo que eles se recusam a fazer, porque os números envolvidos são, em seus termos, tão pequenos que não justificam o investimento. Essa é a falência moral do capitalismo em agir na ausência de um quadro ético e social”.

O fato incontroverso de o mundo não priorizar os problemas de saúde dos pobres deixa claro que passou da hora de mudar paradigmas e de fazer com que os recursos cheguem a quem realmente precisa. Nesse sentido, vale lembrar o que Eric Hobsbawm cravou: “O objetivo da economia não é o ganho, mas sim o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim em si mesmo, mas um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas”.

*Infectologista e professor da Faculdade de Ciências Médicas e Saúde da PUC-SP

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