Educação

Future-se é “aposta arriscada” baseada em mentiras, diz especialista

Romualdo Portela aponta pontos frágeis do programa e rebate algumas afirmações feitas pela equipe de educação do governo

O secretário da Sesu, Arnaldo Barbosa de Lima Junior e o ministro Abraham Weintraub durante apresentação do programa. Créditos: EBC
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O anúncio do programa Future-se e de seu principal objetivo – fazer com que as universidades operem em modelos privados de negócios para captar seus próprios recursos – alertou especialistas em educação. Ainda que não se tenha muitos indicativos de como a operação vai se dar na prática, o temor é que esta seja uma estratégia do governo Bolsonaro para reduzir a presença do Estado na garantia dos direitos sociais, como o direito à educação, e abrir as portas para a financeirização, entendida a partir da transformação da educação em mercadoria por conglomerados financeiros que têm o lucro como objetivo final.

Especialista no tema, o pesquisador livre-docente Romualdo Portela vê com risco a narrativa de que a entrada do capital privado trará mais autonomia e qualidade para as universidades federais. “É uma aposta arriscada, pois não está claro haver interesse do setor privado em investir nas universidades”.

Em entrevista a CartaCapital, Portela aponta outros pontos frágeis do programa e rebate algumas afirmações feitas pela equipe de educação do governo. Na apresentação do Future-se, o secretário de Educação Superior (Sesu), Arnaldo Barbosa de Lima Junior, declarou que a iniciativa possibilitará que professores universitários se tornem ricos, a partir do viés do empreendedorismo. Portela é categórico: “Esse ganho dos docentes é mera retórica. Não há levantamentos confiáveis que indiquem isso”. Confira a entrevista na íntegra.

CartaCapital: O Future-se, programa anunciado pelo MEC, tem como principal eixo a reestruturação do sistema financeiro dos institutos e universidades federais a partir da captação própria de recursos integrada a modelos de negócios privados. Como avalia essa estratégia?

Romualdo Portela: É uma estratégia possível, ainda que polêmica, pois representa uma mudança de qualidade no padrão estabelecido de financiamento público. Entretanto, o programa é bastante vago. Não estabelece o montante de recursos a serem transferidos da orçamento público para financiar a iniciativa. A possível captação de recursos no mercado financeiro é uma aposta arriscada, pois não está claro haver interesse do setor privado em investir nas universidades.

CC: As formas anunciadas para esta captação, fundos imobiliários, patrimoniais, naming rights, conseguiriam atender ao objetivo anunciado pelo MEC?

RP: Em princípio, tais mecanismos são um tiro no escuro. Não há nenhuma indicação de que seria possível captar recursos substantivos com esses expedientes.

CC: Essa forma de financiamento seria benéfico para as ações de pesquisa, inovação e extensão das universidades? Se não, por quê?

RP: De conjunto, certamente não, pois os investimentos que interessam ao mercado são aqueles com potencial de lucro, o que ademais já é possível nas universidades hoje. A pesquisa básica, que não tem aplicação imediata, mas é fundamental para uma perspectiva de futuro tecnológico independente, e a pesquisa não voltada para o mercado certamente seria penalizada.

CC: Uma vez que essas parcerias estejam orientadas para a área dos negócios, podem impactar outras áreas das universidades, como Ciências e Humanas? Por quê?

RP: Certamente. Essas áreas tenderiam a ser menos atrativas para investimentos com fins de lucro, o que colocaria em risco sua subsistência.

CC: O programa é anunciado em um contexto de contingenciamento orçamentário e dentro de uma política que estabelece um teto de gastos para a educação. Como avalia?

RP: Claramente parece ser um passo a mais numa perspectiva de redução da responsabilidade do Estado para com o financiamento da universidade pública.

CC: O programa também coincide com as tramitações do Fundeb, que tem validade até 2020. O governo defende uma proposta menor do que as apresentadas pela Câmara e Senado – defende um repasse de 15% da União ao fundo, ao passo que as demais sinalizam de 30 a 40%. Vê uma estratégia governamental colocada aí?

RP: Sim. A influência de uma concepção de menos presença do Estado no financiamento dos direitos sociais.

 

CC: O governo afirma que a adesão ao programa é voluntária. Mas ao abrirem mão da adesão, acha que institutos e universidades podem ser prejudicados do ponto de vista orçamentário?

RP: Sim, pois aos não aderentes a perspectiva é contarem apenas com os recursos públicos, e a retórica do governo é reduzir gastos nesses setores.

CC: Diante disso, o Future-se pode aprofundar as desigualdades educacionais?

RP: Sim, pois o Estado com políticas de inclusão mais incisivas é o único ente na sociedade que pode impactar em grande escala a desigualdade. Se se reduz a sua presença no financiamento das políticas públicas, e a de educação em particular, a redução das desigualdades fica comprometida. Por exemplo, as políticas de cota tiveram alto impacto em modificar a composição social das universidades públicas no Brasil. Se estas diminuem de tamanho, o acesso das camadas mais pobres e discriminadas fica prejudicado.

CC: O programa também fala em premiar a cultura do esforço, reconhecendo as melhores práticas das instituições e dos professores. Acha que a estratégia também pode reforçar desigualdades?

RP: Certamente aumenta desigualdades, mas o que é pior, crê-se no poder emulativo desses mecanismos, mas eles têm eficácia muito limitada no longo prazo.

CC: O governo também declarou que os professores universitários poderão ser ricos por poderem captar verbas com publicações e ainda atuarem como sócios em startups ou em parcerias. Como vê essa afirmação e a abertura para que os docentes atuem nesse modelo? Há riscos para a educação?

RP: Certamente. Primeiro, esse ganho dos docentes é mera retórica. Não há levantamentos confiáveis que indiquem isso. Ademais, há áreas que são socialmente importantes e que têm pouco apelo de mercado.

CC: E quando aos estudantes, como vê o impacto do programa para eles?

RP: Pode significar uma retração nas políticas de redução das desigualdades educacionais, particularmente nos programas de ação afirmativa e de expansão da oferta (já prejudicados pela Emenda Constitucional 95.)

CC: O Future-se foi estruturado com base em experiências internacionais como MIT e Stanford e Harvard e o governo afirma que replicar essas experiências é uma forma de alçar o Brasil aos melhores rankings internacionais. Estamos diante de uma boa base de comparação se tratando de experiência educacional? O que é possível destacar dessa afirmação?

RP: Primeiro, é falsa. As experiências citadas surgiram de grandes endowments (doações iniciais) e depois foram amparadas por vigorosas políticas de financiamento público. O que se desenha aqui, vai em sentido contrário, de reduzir o gasto público com o ensino superior.

CC: O governo também afirma que no Brasil não falta dinheiro para a educação, mas gestão de recursos. Como avalia essa afirmação?

RP: Também é falsa. O gasto por aluno em nossas instituições públicas é mais baixo que nas instituições de alto nível do exterior. Isso não quer dizer que não se possam aperfeiçoar mecanismos de gestão.

CC: Como avalia a gestão das universidades serem feitas por organizações sociais, ainda que não estejam claros os limites dessa atuação. Vê ganhos ou perdas iminentes?

RP: Acho que teremos perdas sérias com isso. Primeiro, se estabelecerá uma dupla gestão, a já existente na universidade e a nova, pelas organizações sociais. O projeto Future-se é omisso a respeito. Além disso, não esclarece se poderia haver contratação para as atividades fins (docência e pesquisa) pelas organizações sociais em regimes contratuais com menos direitos e segurança. Isso impactaria a produção das universidades.

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