Biologia

O perigo do salmão chileno

Como o risco de doenças nos animais que consumimos levou a indústria a medicá-los cada vez mais

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A criação de salmões envolve uma série de procedimentos relativos à reprodução, à alimentação e ao abate de um animal que ganhou grande valor comercial depois de constatadas as propriedades nutricionais das gorduras dos peixes que habitam águas frias. Assim, na década de 1980, ficou claro que os investimentos nesse tipo de alimento seriam altamente rentáveis, e formas de produção com escala industrial deveriam ser desenvolvidas a fim de não abalar os estoques naturais desse peixe.

Leia atividade didática de Biologia inspirada neste texto
Competências: compreender interações entre organismos e ambiente, em particular aquelas relacionadas à saúde humana, relacionando conhecimentos científicos, aspectos culturais e características individuiais e coletivas
Habilidades: associar características adaptativas dos organismo com seu modo de vida ou com seus limites de distribuição em diferentes ambientes, em especial em ambientes brasileiros
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Investigue o papel ecológico de diferentes espécies, relacionando características anatômicas com hábitos alimentares

Os padrões internacionais para a produção de alimentos vêm sendo pactuados por representantes dos países que integram a ONU nos últimos 50 anos, compondo o chamado 
Codex Alimentarius (Código Alimentar). 
Há uma subcomissão que cuida especificamente dos resíduos
 de produtos veterinários nos alimentos, o que inclui resíduos 
de pesticidas e antibióticos 
na carne, no leite e no pescado.

Pesquisas realizadas com salmões selvagens e cultivados indicam a presença de contaminantes em ambos os casos, resultado de processos relacionados à bioacumulação. Os peixes que se alimentam de algas e demais organismos fotossintetizantes costumam concentrar menos produtos tóxicos do que os animais carnívoros. Nessa atividade, sugerimos duas pesquisas que poderão ser realizadas pelos alunos e que permitirão investigar o papel ecológico de diferentes espécies de peixes, correlacionado características anatômicas com hábitos alimentares.

1 Em uma visita a uma peixaria será fácil solicitar que as vísceras de um animal sejam separadas para estudo. As tarefas dessa primeira atividade consistirão em coletar o estômago 
de peixes, tendo antes tido o cuidado de fotografar sua boca. Alguns 
frascos com um pouco de álcool 
e bem tampados ajudarão na tarefa 
de conservar seu conteúdo. Eles devem ser bem rotulados, para permitir 
sua identificação a partir das fotos.

2 Os alunos deverão investigar 
o conteúdo estomacal encontrado, 
o que demandará pesquisa sobre 
os diferentes tipos de organismos presentes no ambiente do pescado, particularmente útil para realizar 
revisão de conteúdos como zoologia 
de invertebrados. O estômago 
do peixe deve ser aberto com tesoura, 
em placa de Petri, e examinado 
sob lupa, procurando identificar 
peças componentes da anatomia 
das presas. É importante ressaltar 
que esse tipo de pesquisa não trará resultados em peixes de criatórios, alimentados com ração.

3 Além da dentição, é interessante aproveitar as vísceras dos peixes e tomar duas medidas: o comprimento total do peixe e o comprimento de seu intestino. A relação entre essas duas medidas compõe um índice denominado CRI (comprimento relativo do intestino), que varia de maneira muito característica entre espécies carnívoras e herbívoras. A tabela abaixo dá uma ideia do CRI de algumas espécies comercializadas no Brasil.

ESPÉCIE CIE
PINTADO 0,5
TRAÍRA 0,7
CARPA-CABEÇA-GRANDE 15,0
CASCUDO 15,9

É possível perceber diferenças marcantes entre os hábitos de peixes carnívoros, como o pintado 
e a traíra, e peixes de hábito herbívoro 
e fitoplanctófago, como a carpa 
e o cascudo. Esse estudo poderá 
incluir espécies de criadouro, que 
são comercializadas para consumo.[/bs_citem]

As águas frias do Hemisfério Norte foram o primeiro destino dos investimentos. Em 1984, a Noruega, sozinha, respondia por dois terços da produção mundial de salmão de cativeiro. Com a crescente demanda dos mercados do Hemisfério Norte, e principalmente após a confirmação da síndrome da vaca louca, que afastou mais consumidores europeus da proteína animal bovina, o crescimento dos investimentos foi explosivo. Naquele ano, o salmão norueguês atingia a ordem de 22 mil toneladas anuais, mas, dez anos depois, em 1994, a produção mundial tinha alcançado nada menos que 444 mil toneladas, quase metade proveniente daquele mesmo país. Se o crescimento da produção do salmão na Noruega foi da ordem de dez vezes em dez anos, o que já é espantoso, no Chile ele foi, no mesmo período, simplesmente vertiginoso, de cerca de mil vezes, atingindo um quarto da produção global, sendo o segundo produtor mundial. Em 2012, a produção foi sete vezes maior, quase igual à da Noruega.

Com um ritmo de crescimento dessa magnitude, evidentemente o espaço disponível para as criações foi sendo cada vez mais disputado e as áreas de confinamento para crescimento e engorda foram ficando cada vez mais próximas. Em 1984, os criadouros noruegueses tinham registrado uma perda significativa, com a mortandade de peixes por anemia.

Pouco depois, ficou claro que se tratava de uma infecção causada por um vírus muito semelhante ao da gripe, mas que não oferece risco aos humanos, e que é transmitido pela própria água, pelo contato de tratadores (luvas etc.), além de ser transportado por um pequeno crustáceo parasita que se alimenta de muco. Daí a experiência norueguesa ser mais antiga e recomendar grande distância entre os criadouros, uma vez que não existe tratamento para a doença e os peixes afetados devem ser rapidamente descartados.

O texto O salmão medicado, publicado originalmente em CartaCapital, mostra como existe uma enorme diferença entre as distâncias dos criadouros no Chile e na Noruega. No entanto, a diferença mais gritante refere-se à quantidade de antibióticos que os chilenos permitem atualmente nos criadouros, níveis 36 mil vezes maiores do que os da Noruega. No entanto, no passado, ambos tinham níveis semelhantes, e a diferença hoje verificada tem uma explicação.

Na década de 1980, havia o risco de doenças bacterianas no salmão, em especial as causadas pelos gêneros Aeromonas e Moritella. Por isso, os antibióticos eram largamente usados nas fazendas de todo o mundo, inclusive norueguesas. Em 1989, os criadouros chilenos enfrentaram a súbita epidemia de uma doença desconhecida, provocada por bactérias do grupo das riquétsias, por isso denominada SRS (Salmon Rickettsia Syndrome). Mais de 50% das mortes de salmão em cativeiros chilenos devem-se a essa doença, que também é controlável por meio de antibióticos, dentro dos limites das recomendações internacionais. Os estoques noruegueses não foram contaminados por SRS.

A partir de 1993, as doenças causadas por Aeromonas e Moritella passaram a ser controladas eficazmente com o uso de vacinas, dispensando quase totalmente os antibióticos. Isso permitiu que a legislação norueguesa passasse a exigir níveis muito menores dessas substâncias em relação aos anteriormente praticados. Isso, na prática, impediu a importação do salmão sul-americano, que continua sob o risco da SRS, acabando com a concorrência dos peixes chilenos, mais baratos, no sofisticado mercado nórdico. Protecionismo econômico ou rigor sanitário? O início da criação comercial do bacalhau norueguês, que ainda não conta com vacinas, responderá a essa questão.

Nelio Bizzo é professor de Metodologia de Ensino da Biologia da Universidade de São Paulo.

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