Educação

Campanha do MEC ignora dificuldades e pede que estudantes “se reinventem” para Enem

Campanha do MEC não leva em consideração a diversidade do País e a dificuldade de acesso à internet e aos livros

Em meio à pandemia, campanha do Inep pede a estudantes que se reinventem para estudar para Enem. Créditos: divulgação
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Uma campanha divulgada recentemente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pelas provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), vêm causando polêmica entre os estudantes na internet. No vídeo, adolescentes tentam justificar a importância da prova este ano, que foi mantida em sua data original, mas acabam ignorando que nem todos os alunos têm boas condições de estudar para a prova durante a pandemia.

“E se uma geração de novos profissionais fosse perdida? Médicos, enfermeiros, engenheiros, professores. Seria o melhor pro nosso país? A vida não pode parar. É preciso ir à luta, se reinventar, se superar”, diz um “aluno”. Em seguida, uma garota diz: “Estude, de qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, internet, com a ajuda a distância dos professores”. Os jovens falam de um ambiente confortável e equipado para os estudos.

A campanha do Inep definitivamente não dialoga com a realidade social e econômica ainda excludente no Brasil. De acordo com a mais recente edição da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC 2018), divulgada no último dia 29 de abril pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet. Em números totais, isso representa cerca de 46 milhões de brasileiros sem acesso à rede.

 

Embora o percentual de brasileiros com acesso à rede tenha aumentado de 69,8% em 2017 para 74,7% em 2018, 25,3% ainda não têm internet à disposição. Em áreas rurais, o índice de pessoas sem esta condição tecnológica (53,5%) é bem maior do que nas cidades (20,6%). Os dados são relativos aos três últimos meses de 2018.

A disponibilidade do serviço nas diversas regiões do País também conta. Para 4,5% dos brasileiros dos brasileiros que não acessam a internet, o serviço sequer está disponível. Ou seja, é impossível contratar um pacote de internet. Esse percentual é mais elevado na Região Norte, onde 13,8% daqueles que não acessam a internet não têm acesso ao serviço nos locais que frequentam. Na Região Sudeste, esse percentual é 1,9%.

Nas áreas rurais, a não disponibilidade do serviço fica em 12%, taxa 10 vezes superior a das áreas urbanas (1,2%).

Realidade nas periferias

A estudante Thais Leticia Nascimento Castro, de 19 anos, é taxativa ao dizer que a campanha não dialoga com as diversas realidades do País, sobretudo a das periferias e comunidades ribeirinhas. Moradora da comunidade de Tabocal, distante 37 km do centro de Santarém (PA), ela narra as dificuldades enfrentadas até finalizar o Ensino Médio em 2017.

“Nunca tive computador em casa. Quando precisava fazer algum trabalho, tinha que buscar a casa de alguém que tivesse e pudesse me emprestar”, conta. “Também nunca tive wi-fi (rede sem fio) e no ano passado passei a usar a da minha vizinha. Pago uma taxa de R$ 15 para usar’.” Lá, só uma operadora de internet funciona e, mesmo assim, com baixa qualidade. Thais conta que há comunidades mais distantes que sequer têm acesso à este recurso.

“O Inep e o MEC não estão levando em conta essas realidades, das periferias, dos estudantes ribeirinhos, as oportunidades não são as mesmas de quem está mais ao centro. Também acho complicado manter o calendário do Enem no meio de uma pandemia. Primeiro, porque não sabemos como estará a realidade do País em novembro, depois porque há diversas dificuldades que podem desestimular e frustar os estudantes nesse caminho. Por exemplo, muitos, como era o meu caso, só têm acesso aos livros nas escolas. O que fazer com as unidades fechadas?”, questiona.

#AdiaEnem

Desde o anúncio das provas do Enem este ano, há um forte movimento de entidades e especialistas em educação pelo adiamento da prova. A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), em conjunto com a União Nacional dos Estudantes (UNE), se posicionou contra a decisão, alegando falta de sensibilidade em meio à pandemia.

Além dos impeditivos de acesso já citados, também questionaram o aproveitamento das atividades virtuais, modelo adotado por grande parte das redes de ensino como alternativa neste momento. “Sabemos que o aproveitamento do ensino-aprendizagem fica fortemente em defasagem em relação às atividades presenciais”, pontuam, em nota.

“É momento de pensar soluções para preservar vida da nossa população no enfrentamento à pandemia, mas também para que os estudantes não sejam prejudicados no futuro. Defendemos a suspensão do edital, e um novo debate sobre o cronograma do Enem, propondo o adiamento da aplicação das provas e buscando soluções para ajuste dos calendários em conjunto com a rede de ensino básico e de ensino superior brasileiras”.

O que pensam Weintraub e o governo?

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, não aceita os argumentos dos estudantes e apelida o movimento que pede o adiamento do Enem como “turma do terrorismo”.

“É de novo a turma do terrorismo, que quer destruir as famílias, quer quebrar as expectativas, deixar todo mundo sem esperança. Daqui a algumas semanas vai passar a quarentena, a vida volta ao normal, volta a estudar, porque no final do ano vai ter Enem, sim senhor”, declarou ao programa “Conversa com o Ministro”, da Rádio MEC. “Nesse momento, começar a falar que não vai ter Enem é um ato de terrorismo contra as famílias e os cinco milhões de jovens que vão prestar a prova.”

Por enquanto, o Inep apenas adiou a data das provas do Enem Digital para 22 e 29 de novembro. A aplicação da prova impressa permanece prevista para 1 e 8 de novembro.

No momento em que as escolas de todo o País paralisaram suas atividades por conta da pandemia do coronavírus, o governo Bolsonaro suspendeu, via medida provisória, a obrigatoriedade de cumprimento dos 200 dias letivos este ano, mas manteve a obrigatoriedade do cumprimento da carga mínima anual de 800 horas no ano letivo para unidades de educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio), como prevê a Lei de Diretrizes e Bases (LDB).

A medida também vem gerando debate. Famílias, professores e projetos de lei questionam a obrigatoriedade do ensino remoto e pedem que as atividades não sejam contadas como horas letivas obrigatórias; há casos em que se pedem a suspensão do calendário escolar este ano.

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